Resoluciones Asamblea General

PARECER 

 

Este parecer visa expor a disciplina legal da corrupção no Brasil e, num momento ulterior, apontar, através de um estudo comparativo, as convergências e as divergências existentes entre a legislação penal brasileira e a Convenção. Por derradeiro, e com base nas conclusões obtidas nas fases anteriores, apresenta-se proposta de alteração legislativa em matéria de corrupção.

 

Foi ele submetido à discussão na Conferência sobre a Convenção Interamericana contra a Corrupção promovida pela Organização dos Estados Americanos e Ministério da Justiça, na cidade de Brasília em 8 de maio de 2003. Contou com a participação do Dr. Jorge Garcia-González (OEA), Dr. Richard Werksman, Dr. Carlos Balsa, Dr. Nicolas Dassen, o autor deste parecer Dr. Luiz Regis Prado, que proferiu Conferência sobre a “Legislação Penal no Brasil e a Convenção Interamericana contra a Corrupção”, bem como do Dr. Miguel Reale Júnior, da Universidade de São Paulo. A presença de inúmeros Ministros de Estados, Diplomatas, Procuradores da República, Juízes Federais, Juízes de Direito, Promotores de Justiça, Professores Universitários, Estudantes de Direito, num conjunto de mais quatrocentas pessoas.

 

O parecer, após a Conferência e os debates, não mereceu reparos, tendo tido inclusive  a adesão, praticamente unânime, dos especialistas ali reunidos.

 

Assim, foram feitas pequenas alterações em relação aos instrumentos normativos[1] que aprovaram a Convenção Interamericana. Nada mais.

 

Insta observar, que ficou patente a necessidade de adequação da legislação brasileira nos termos do parecer á Convenção, para uma apropriada proteção dos bens jurídicos e eficaz combate à corrupção. O Ministério da Justiça, através da Dra. Ivete Lund Viégas, comprometeu-se em tomar as devidas providências.  

 

SUMÁRIO 

PARTE I – Considerações acerca dos crimes de corrupção

PARTE II – Análise da legislação nacional em matéria de corrupção

            Seção I – Delitos de peculato (art.312, CP), violação de sigilo funcional (art.325, CP), tráfico de influência (art.332, CP), conceito penal de funcionário público (art.327, CP) e enriquecimento ilícito como infração administrativa (Lei 8.429/92)

 

            Seção II – Delitos de corrupção passiva (art.317, CP), corrupção ativa (art.333, CP), corrupção ativa em transação comercial internacional (art.337-B, CP), tráfico de influência em transação comercial internacional (art.337-C, CP) e conceito penal de funcionário público estrangeiro (art.337-D, CP)

PARTE III – Estudo comparativo entre a legislação brasileira e a Convenção Interamericana contra a Corrupção

PARTE IV – Propostas de alteração legislativa

 

PARTE I

CONSIDERAÇÕES GERAIS ACERCA DOS CRIMES DE CORRUPÇÃO

O vocábulo “corrupção” (do latim corruptio) denota a ação de corromper, de produzir adulteração, perversão, prevaricação. Corrupção e suborno não se confundem, embora sejam termos estreitamente ligados. “Subornar” (do latim subornare) significa induzir a mau procedimento, aliciar com processos venais para a prática de ação contrária ao direito ou ao dever; peitar, seduzir ou enganar empregando meios contrários à legalidade. Assim, o suborno (ato ou efeito de subornar) indica a corrupção de pessoa, por meios ilícitos, para a praticar determinado ato.

No âmbito da Administração Pública, corrupção é o fenômeno pelo qual um funcionário é levado a agir de modo diverso dos padrões normativos do sistema, favorecendo interesses particulares em troca de benefício ou recompensa. Corrupto é, assim, o comportamento ilegal daquele que desempenha uma função na estrutura do Estado, fazendo uso dela para atender finalidade diversa da que lhe é própria (interesse público). Nessa linha, é força destacar que a corrupção não é considerada em termos de moralidade ou imoralidade, mas sim de legalidade ou ilegalidade[2]. Significa, portanto, a troca entre quem corrompe e quem se deixa corromper. Encontra-se normalmente relacionada à promessa de recompensa ou benefício em troca de um comportamento que favoreça os interesses do corruptor. É uma forma particular de se exercer influência. O comportamento corrupto amolda-se ao funcionamento de um sistema, em particular ao modo como se tomam as decisões. O primeiro fator a se considerar é o âmbito de institucionalização de certas práticas: quanto maior a institucionalização, maiores serão as possibilidades de corrupção. Por isso, quanto maior a esfera de atuação do setor público em relação ao privado, maiores as chances de verificação do comportamento corrupto. Mas não é só a amplitude do setor público que deve ser levada em conta: também há de ser considerado o ritmo com que ele se expande e a própria cultura das elites e das massas[3].

Sendo a corrupção um modo de influenciar as decisões públicas, quem dela se serve procura intervir em três níveis. Usa da corrupção na fase de elaboração das decisões, como tentativa de obtenção de acesso privilegiado. Ao depois, se vale da conduta corrupta na etapa de aplicação das normas por parte da Administração Pública e de suas instituições, buscando alcançar uma isenção ou uma aplicação de qualquer modo favorável. Por fim, a corrupção pode ser usada ainda para se fugir às sanções legalmente previstas. Em cada uma dessas etapas, a corrupção atinge, respectivamente, o Poder Legislativo, o Executivo e o Judiciário. 

De modo geral, pode-se dizer que a corrupção é fator de desagregação do sistema, sendo sua influência, ainda que, a longo prazo, sempre negativa, acabando por favorecer uns setores em prejuízo de outros. Atuando como uma forma privilegiada de influência, reservada apenas àqueles que têm meios, muitas vezes exclusivamente financeiros, de exercê-la, a corrupção conduz ao desgaste do mais importante recurso do sistema: a sua legitimidade[4].

A venalidade é um mal que circunda a Administração Pública desde a Antigüidade, fruto da avidez, do apego ao poder, do protecionismo dos apaniguados, das sinecuras e do afrouxamento dos deveres cívicos por parte daqueles que detêm parcela do poder estatal, estimulados pelos corruptores, que enfocam o Estado como mero instrumento colocado a serviço dos seus interesses pessoais.[5]

Observe-se que já não é mais objeto de estudos recentes a corrupção como um ato isolado e sim a “grande” corrupção, a corrupção política e administrativa, pensada como corrupção sistêmica. Esta pode ser definida como uma troca clandestina entre dois mercados: o mercado político-administrativo e o mercado econômico-social, ocorrendo na interface entre o público e o privado e principalmente nos setores onde existe um alto poder decisório por parte dos funcionários públicos ou políticos[6].

Dessa forma, ainda que o comportamento corrupto possa figurar nos mais diferentes contextos, sua característica essencial consiste na transferência não-autorizada de valores. A pessoa corrompida deve, necessariamente, trabalhar para outro indivíduo ou instituição, visto que o propósito do suborno é induzi-la a situar seus interesses pessoais em detrimento dos interesses e objetivos da instituição para a qual trabalha. Além disso, para que possa ser corrompido, o funcionário deve ocupar, forçosamente, uma posição de poder dentro da instituição, de forma que lhe reste assegurado o exercício discricionário de sua autoridade[7].

Registre-se que a corrupção não é mais vista como uma conseqüência do subdesenvolvimento ou como uma característica de países onde ainda predomina o clientelismo, aparecendo tanto em países com governos fortes e estáveis como em países com governos fracos e instáveis, em países marcados pela existência de partidos políticos fortes e em países com sistema partidário fraco, nos quais se verifica, em comum, um momento de redefinição ou uma confusão histórica entre o que há de ser considerado como público e o que deve ser tomado como privado, assim como do papel do Estado na gestão da economia[8].

É oportuno indagar aqui por que a corrupção, que tem sido uma constante no cenário político desde o surgimento do liberalismo, suscita atualmente maior preocupação no que diz respeito à sua repressão. Duas razões parecem justificar essa preocupação: por um lado, as profundas transformações sofridas pelos modernos sistemas democráticos com o surgimento dos grandes partidos políticos (e suas conseqüentes necessidades financeiras); a interiorização dos valores relacionados ao governo popular; o crescimento dos meios de comunicação, etc.; e, por outro lado, a transformação da posição dos Poderes Públicos nas formas de produção, que ampliou as possibilidades de os governantes utilizarem sua autoridade para obter vantagens econômicas pessoais. Tem-se, assim, que as formas tradicionais de combate à corrupção tornaram-se antiquadas diante dessa nova ordem de fatores.

São quatro as principais formas de repressão e controle da corrupção: o procedimento legislativo; o controle da Administração na execução das leis; o controle judicial e a transparência e a responsabilidade dos próprios governantes. Na atualidade, esta última forma de combate à corrupção é a que tem apresentado as mais graves disfunções. A responsabilidade dos governantes implica, essencialmente, a obrigação de responder, isto é, o dever inerente a todo agente público de prestar contas de sua atuação no exercício do cargo. Essa obrigação figura não apenas no âmbito político como também na esfera jurídico-penal. A submissão dos governantes à lei penal é uma exigência do constitucionalismo democrático, que implica a obediência do poder ao direito e a igualdade de todos perante a lei[9].

Nessa linha de pensar, a corrupção representa uma agressão ao próprio funcionamento do Estado de Direito democrático. Atinge tanto o prestígio da Administração Pública ante os administrados como o dever da Administração de servir com objetividade aos interesses gerais, segundo exigência da Constituição Federal, que destaca a probidade e a impessoalidade como dever de todos aqueles que exercem funções públicas, além da eficiência inerente à prestação do serviço público (art.37, caput). Em um Estado de Direito democrático, a confiança dos cidadãos no correto exercício da função pública é lesada cada vez que as decisões das autoridades aparecem como produto de motivações alheias ao cumprimento da lei e especialmente quando existe o perigo de que possam ser “compradas” pelos particulares[10].

O fenômeno da corrupção lato sensu representa, assim, uma ameaça para o Estado de Direito e a sociedade democrática, seja porque atinge a representação popular, que subentende a separação dos Poderes, seja porque atinge os direitos fundamentais. Neste último aspecto, a própria Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, menciona em seu Preâmbulo uma relação de causa e efeito entre a ignorância, o esquecimento e o desprezo dos direitos do homem, e a corrupção dos governos. A corrupção atinge direitos econômicos e sociais, dá lugar a tratamento discriminador e desigual e é fonte de apropriação indevida de bens e do surgimento de monopólios que suprimem ou enfraquecem a liberdade empresarial ou comercial[11].

Ao se deixar corromper, o funcionário atenta particularmente contra o desempenho impessoal da atividade pública, pois, nos casos em que executa ato próprio de seu cargo em troca de retribuição, coloca-se numa posição parcial em relação ao particular que lhe deu ou prometeu a vantagem[12]. A corrupção é marcada pelo subjetivismo do funcionário, que dá lugar à perda da objetividade na tomada de decisões administrativas, favorecendo a obtenção de vantagens pessoais, em detrimento do interesse geral[13].

Nesse sentido, o ato de corrupção pode ser visualizado como uma confusão de interesses, ou melhor, uma interposição de interesses privados de natureza econômica (do funcionário público e de um terceiro) sobre o interesse público, que gera o enriquecimento pessoal do agente público corrupto e de uma ou várias outras pessoas através da apropriação ou desvio ilícitos de dinheiro público para patrimônios privados. Essa interposição de interesses privados sobre o interesse público foi conformando uma “economia de transgressão”, que se vale de instrumentos ou de instituições jurídico-privadas para a prática de delitos contra a Administração Pública (v.g.,através da criação de pessoas jurídicas fictícias ou compostas de sócios e administradores testas-de-ferro) ou para o desvio ou encobrimento da vantagem ilícita recebida pelo agente com esses crimes (lavagem de dinheiro)[14]. Ou seja, o Direito privado adquire aqui um sentido eminentemente instrumental: o de permitir aos corruptos revestir suas condutas, ou os efeitos delas decorrentes, da aparência de legalidade[15].  

Para combater a corrupção, é preciso modificar o conjunto legislativo regulador da atividade administrativa em seus diversos âmbitos e níveis, de forma a amoldar sua ação a pautas e critérios objetivos, de acordo com os princípios já traçados pela Constituição (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência). Ao lado dessa adaptação a critérios objetivos, é preciso reconstruir ou reintroduzir indispensáveis mecanismos de controle da corrupção[16].

Além disso, junto à responsabilidade penal deve ser considerada também a responsabilidade política, que não implica necessariamente a existência de um delito, uma vez que muitos dos atos de desrespeito aos princípios supramencionados e merecedores de reprovação social não podem ser subsumidos a nenhum tipo penal. E na apuração da responsabilidade política desempenham importante papel os mecanismos de controle do Poder Executivo pelo Poder Legislativo (v.g., através dos Tribunais de Contas e, especialmente, das Comissões Parlamentares de Inquérito). Assim, constata-se que a apuração da responsabilidade política constitui importante instrumento tanto na prevenção quanto na repressão do delito de corrupção, ao mesmo tempo em que contribui para o restabelecimento da tranqüilidade social[17].

E por que é preciso combater a corrupção em nível internacional? Antes da assinatura da Convenção Interamericana contra a corrupção, a idéia de que a corrupção é um mal que deve ser combatido através de instrumentos de caráter supranacional, e não apenas no âmbito interno de cada país, parecia pouco plausível. A falta de comunicação, a inflação, a desordem econômico-financeira, entre outros fatores, contribuíam para dissimular o problema da corrupção.

Entretanto, a abertura de fronteiras comerciais decorrente da globalização, o fim da guerra fria e os ajustes que muitos países latino-americanos se viram obrigados a realizar para impedir o avanço da inflação e as bancarrotas alertaram os povos para a gravidade da corrupção e a sua incidência sobre a vida de todos aqueles que suportavam a pobreza e outras limitações. A análise da disciplina tributária interna dos países permite comprovar a quantidade de fundos desviados de setores como saúde e educação em decorrência da corrupção. Ao mesmo tempo, os meios de comunicação via satélite expuseram a todo o mundo imagens sobre o nível de vida da população de países desenvolvidos, onde quase não existe corrupção.

Entre os motivos que justificam o combate internacional à corrupção,  destacam-se[18]:

a) a constatação de que a abertura comercial exige transparência, como forma de resguardar a lealdade e a eqüidade do intercâmbio econômico entre as nações: as relações econômicas entre os diferentes países estão cada vez mais estreitas. A competição entre empresas nacionais e estrangeiras promove a redução de custos dos produtos comercializados e melhora sua qualidade. Assim, muitos dos prejuízos que se costumam atribuir a um excesso de abertura comercial procedem, na verdade, de distorções no sistema, em razão de uma competição que, em vez de aberta e transparente, é desleal. E uma das formas de deslealdade é a corrupção;

b) a necessidade de promoção do desenvolvimento dos povos, muitas vezes vitimados por sobrecargas injustas derivadas da corrupção: quando um Estado não oferece segurança jurídica, não só os investimentos estrangeiros como também o próprio capital nacional fogem em direção a outros países. Em termos sociais, isso significa menos fontes de trabalho e conseqüente aumento do desemprego;

c) o fato de que o combate à corrupção é uma forma de preservar a legitimidade das instituições e sistemas, acobertados por um manto de ilegitimidade quando não se governa para o bem comum: a corrupção não apenas vicia a economia como também obsta o desenvolvimento social e gera aumento da pobreza. Além disso, desacredita as instituições públicas, acarretando o risco de perda da legitimidade do exercício da autoridade estatal;

d) a importância de se combater o crime organizado: existe grande preocupação quanto aos laços que  unem a corrupção e o crime organizado, as máfias políticas e a profusão do narcotráfico. Em algumas ocasiões, a corrupção é gerada por esses fatores; em outras, são esses poderes ilegítimos os que mais se aproveitam da corrupção já existente nos governos para estender sua esfera de atuação. O crime organizado é um mal que não pode ser combatido de forma isolada pelos Estados. São forças demasiado poderosas para serem ignoradas pela comunidade internacional;

e) a necessidade de  maior e mais ampla cooperação internacional para a obtenção de informação, provas e realização de extradição entre os países: com freqüência, os funcionários corruptos ocultam seus bens em outros países ou fogem para o exterior para dificultar a ação da justiça. A assistência e a cooperação internacionais são fundamentais para a obtenção de informações, recolhimento de provas, busca e apreensão de bens, detecção de dinheiro “lavado” e efetivação de processos extradicionais;

f) a criação de uma consciência ética maior na sociedade civil a respeito da necessidade de combate à corrupção, apontando suas estreitas ligações com o subdesenvolvimento econômico: os cidadãos cumprem importante papel tanto na prevenção da corrupção quanto na detecção de seus efeitos. Mas, para que essa participação seja possível, é necessária a elaboração de leis que contribuam para a transparência dos atos de governo e a garantia de proteção da vida e da integridade física, moral e econômica daqueles que se decidam por lutar contra a corrupção. 

Todas essas razões se refletem de certa forma no Preâmbulo e em todo o texto da Convenção Interamericana contra a Corrupção, firmada em 29 de março de 1996, em Caracas, Venezuela. O Brasil, embora signatário do documento, ainda não o ratificou. Acredita-se não haver motivos para que o nosso país não ratifique, ainda que com algumas reservas, o texto da Convenção.

Como reflexo da atenção do legislador pátrio às conseqüências da corrupção em nível internacional, o Capítulo II-A foi acrescentado ao Título XI do Código Penal brasileiro pela Lei 10.467, de 11 de junho de 2002, que visa dar efetividade ao Decreto 3.678, de 30 de novembro de 2000. Esse Decreto promulgou a Convenção sobre o Combate à Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais, concluída em Paris em 17 de dezembro de 1997[19], [20].

Historicamente, o primeiro ato legislativo voltado ao combate à corrupção em âmbito internacional foi a Foreign, Corrupt, Pratices Act, surgida em 1977, nos Estados Unidos da América do Norte, sob a presidência de Jimmy Carter. Como conseqüência das investigações do caso Watergate, naquela mesma década, o Congresso norte-americano havia descoberto que algumas companhias locais concediam suborno a partidos políticos e a funcionários públicos de outros países. De conseguinte, aquele texto legislativo estabelecia sanções severas a empresas e cidadãos particulares dos Estados Unidos que, com o escopo de  manter determinado negócio, subornassem funcionários públicos estrangeiros, partidos políticos, funcionários ou candidatos de partidos políticos no exterior.

Passado algum tempo, e sem que nenhum outro país tivesse tomado iniciativa semelhante, o Comitê Jurídico Interamericano (órgão de assessoria da OEA) destacou a necessidade de que fossem tratadas questões legais derivadas da corrupção.

Em 1994, a United States Information Agency e a United States Office of Government promoveram, em Washington D. C., a  Primeira Conferência Internacional de Ética Governamental, com representantes de governos dos cinco continentes. Essa reunião foi considerada preparatória da Cúpula de Presidentes das Américas, realizada em Miami, em dezembro daquele mesmo ano. A denominada “Cúpula de Miami” resultou no compromisso, firmado entre os governantes presentes, de combater a corrupção.

Nesse sentido, o governo da Venezuela apresentou um projeto de convenção cujo ponto central era o compromisso dos Estados de conceder a extradição dos acusados de atos de corrupção. A OEA, a seu turno, havia formado o grupo de trabalho “Probidade e Ética Cívica”, que elaborou projeto levando em conta a iniciativa da Venezuela e o submeteu à análise do Comitê Jurídico Interamericano. Assim foi redatado, após muitas negociações, um projeto final de compromisso que, em 29 de março de 1996, transformou-se na Convenção Interamericana contra a Corrupção, firmada por 22 Estados americanos[21]. A Convenção tem por objetivo promover e fortalecer o desenvolvimento, por iniciativa de cada um dos Estados-partes, dos mecanismos necessários para prevenir, detectar, punir e erradicar a corrupção e promover, facilitar e regular a cooperação entre os Estados-partes a fim de assegurar a eficácia daqueles mecanismos (artigo II). Encontra-se dividida em duas grandes partes: a primeira dedicada às medidas preventivas que os governos se comprometem a tomar para evitar a corrupção e a buscar maior transparência na administração (artigo III). Entre elas se destaca a criação de sistemas para proteger os funcionários públicos e os cidadãos que denunciem de boa-fé atos de corrupção (artigo III, inciso 8) e a criação de órgãos de controle superior, a fim de desenvolver mecanismos modernos para prevenir, detectar, punir e erradicar as práticas corruptas (artigo III, inciso 9).

A segunda parte é quase que exclusivamente dedicada à matéria penal, que por sua vez pode ser dividida entre os compromissos que obrigam à criação de tipos penais no Direito positivo dos Estados-partes e os compromissos de assistência e cooperação.

A obrigação de criar tipos penais situa-se em de três diferentes níveis: a) no nível de obrigação máximo se destaca o compromisso de incriminar condutas que, em razão de sua gravidade, já se encontram em sua maioria tipificadas pelos ordenamentos internos dos Estados, tais como a corrupção ativa e a passiva, a administração fraudulenta, etc.; b) no segundo nível, subordinada à ausência de contradições entre o compromisso estabelecido na Convenção e os princípios jurídicos vigentes no Estado firmante, encontra-se a obrigação de tipificar formas mais recentes de corrupção. Nesse sentido, entre outras medidas, a Convenção determina a incriminação do suborno transacional, entendido este como o oferecimento ou a outorga, por parte de cidadãos de um Estado-parte, de pessoas que tenham residência habitual em seu território e de empresas nele domiciliadas, a um funcionário público de outro Estado, direta ou indiretamente, de qualquer objeto de valor pecuniário ou de outros benefícios, como dádivas, favores, promessas ou vantagens em troca da realização ou omissão, por esse funcionário, de qualquer ato no exercício de suas funções públicas relacionado com uma transação de natureza econômica ou comercial (artigo VIII); c) no terceiro nível, encontra-se a obrigação, por parte dos Estados- partes, de considerar a legislação de uma série de tipos penais cuja introdução em seu Direito positivo é reputada oportuna, e por isso não poderá ser descartada por simples razões de conveniência. Aqui se incluem os delitos de uso indevido de informação reservada ou privilegiada, a malversação de bens públicos e a obtenção ilícita de benefícios públicos.

Essa iniciativa dos Estados americanos foi fundamental para que, em 1997, os membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) firmassem em Paris a Convenção sobre o Combate à Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais. O exemplo da América tinha sido fundamental, mas fora da OEA estava o maior número de países com forte capacidade de exportação de bens e serviços, situação que representa o campo de ação específico da corrupção internacional.

A mencionada Convenção estabelece que cada Estado-parte deverá tomar todas as medidas necessárias para a previsão em sua legislação, como delito, da conduta daquele que oferece, promete ou dá qualquer vantagem pecuniária indevida ou de outra natureza, seja diretamente ou por intermediários, a um funcionário público estrangeiro ou a terceira pessoa, causando a ação ou a omissão desse funcionário no desempenho de suas funções oficiais, com a finalidade de realizar ou dificultar transações ou obter outra vantagem ilícita na condução de negócios internacionais.

No tocante às pessoas jurídicas, estabelece a Convenção que cada Estado-parte deverá tomar todas as medidas necessárias ao estabelecimento da responsabilidade desses entes pela corrupção de funcionário público estrangeiro, de acordo com seus princípios jurídicos (artigo 2). Todavia, tendo em vista o predomínio, desde há muito, no Direito Penal brasileiro, assim como nos demais Direitos de filiação romano-germânica, do apotegma societas delinquere non potest, como verdadeira reafirmação dos postulados da culpabilidade e da personalidade das penas, os crimes praticados no âmbito da pessoa jurídica só podem ser imputados criminalmente às pessoas naturais na qualidade de autores ou partícipes[22]. A própria Convenção reconhece essa particularidade, ao prever que, caso a responsabilidade criminal, sob o sistema jurídico do Estado-parte, não se aplique às pessoas jurídicas, deverá ser assegurado que as pessoas jurídicas estarão sujeitas a sanções não-criminais efetivas, proporcionais e dissuasivas contra a corrupção de funcionário público estrangeiro, inclusive sanções financeiras (artigo 3.2). Ou seja, a vigência do princípio societas delinquere non potest, de valor político-criminal relevante, não deve inviabilizar a necessária aplicação de medidas sancionatárias extrapenais (v.g., multa administrativa; suspensão parcial ou total de atividades; interdição temporária de estabelecimento, obra ou atividade; proibição de contratar com o Poder Público, bem como dele obter subsídios, subvenções ou doações) às pessoas jurídicas, notoriamente em um Direito Penal minimalista, fragmentário e de natureza verdadeiramente garantista. Igualmente, impõe acrescentar que não há nenhum empecilho para que essas sanções, sobretudo as mais graves, sejam aplicadas pelo juiz criminal[23].

Determina ainda a Convenção que cada Estado-parte deverá tomar as medidas necessárias a garantir que o suborno e o produto da corrupção de funcionário público estrangeiro, ou o valor dos bens correspondentes a tal produto, estejam sujeitos a retenção e confisco ou que sanções financeiras de efeitos equivalentes sejam aplicáveis (artigo 3.3). A esse respeito, insta observar que já prevê o Código Penal brasileiro, entre os efeitos genéricos da condenação, a perda, em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé, do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática de fato criminoso (art.91, II, b).

Condizente com essa nova postura que têm assumido os Estados e as organizações internacionais no sentido de combater a corrupção como um mal não mais adstrito apenas aos limites do território de cada país, o legislador nacional guindou à categoria de delitos a corrupção ativa de funcionário público estrangeiro e o tráfico de influência em transação comercial internacional.

É importante destacar que essa iniciativa constitui significativo avanço da legislação pátria, que ainda não contava com disposição similar que regulasse a matéria. No tocante aos demais delitos cuja tipificação é sugerida pela Convenção Interamericana contra a Corrupção, é força registrar que o Código Penal brasileiro já conta com uma série de figuras aptas a abarcar as situações ali previstas (v.g., peculato, emprego irregular de verbas ou rendas públicas, concussão, prevaricação, etc.), exceção feita ao enriquecimento ilícito e ao peculato de uso[24], que ainda não foram objeto de incriminação por parte do nosso ordenamento[25].

PARTE II

ANÁLISE DA LEGISLAÇÃO NACIONAL EM MATÉRIA DE CORRUPÇÃO

Seção I – Delitos de peculato (art.312, CP*); violação de sigilo funcional (art. 325, CP); tráfico de influência (art.332, CP); conceito penal de funcionário público (art.327, CP) e enriquecimento ilícito como infração administrativa (Lei 8.429/92).

I –A. Peculato

Art. 312. Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.

§ 1.º Aplica-se a mesma pena, se o funcionário público, embora não tendo a posse do dinheiro, valor ou bem, o subtrai, ou concorre para que seja subtraído, em proveito próprio ou alheio, valendo-se de facilidade que lhe proporciona a qualidade do funcionário.

Peculato culposo

§ 2.º Se o funcionário concorre culposamente para o crime de outrem:

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano.

§ 3.º No caso do parágrafo anterior, a reparação do dano, se precede a sentença irrecorrível, extingue a punibilidade; se lhe é posterior, reduz de metade a pena imposta.

1.         Introdução

É inegável que na sociedade moderna, na qual as relações multiformes tornaram-se a tônica nos agrupamentos sociais, afloram, a cada dia com mais veemência, as necessidades coletivas, dentre as quais existem aquelas de importância vital para a própria edificação da vida social, como a questão da segurança pública e das comunicações – denominadas necessidades coletivas essenciais –, além de outras que, embora não decorram necessariamente da vida em sociedade, são também importantes para a coletividade, como o fornecimento d’água e de energia elétrica, sendo conhecidas, por conseguinte, como necessidades coletivas instrumentais.[26]

Em face da importância da satisfação coletiva de tais bens e serviços, surge a figura do Estado-Administração, com os seus órgãos e cargos públicos, para executar tais atividades direta ou indiretamente ou simplesmente fiscalizar o seu exercício. O conjunto de órgãos destinados a esse fim é denominado Administração Pública em sentido formal, enquanto a gama de atividades por aqueles exercida para a consecução de tal finalidade recebe o nome de Administração Pública em sentido material.[27]

Frise-se que, embora a função administrativa seja inerente ao Poder Executivo, também é ela exercida atipicamente pelos Poderes Judiciário e Legislativo no que tange à sua estruturação e funcionamento.[28]

No Direito Penal, contudo, a expressão Administração Pública não tem o sentido restrito ditado pelo Direito Constitucional e pelo Direito Administrativo – vale dizer, o exercício de uma das funções vitais do Estado no âmbito da divisão de poderes.[29] Para aquele, a Administração Pública engloba toda a atividade estatal, tanto no sentido subjetivo, que significa os órgãos instituídos pelo Estado para a concreção dos seus fins, como no sentido objetivo, consistente na realização de toda atividade estatal visando à satisfação do bem comum.

Ensina-se que tal posicionamento está sedimentado na concepção unitária do Estado, alcançando as funções exercidas pelos três Poderes.[30]

Assim, os crimes elencados pelo legislador no presente título trazem como traço comum o atentado à atividade funcional do Estado, identificando-se no Capítulo I, em sua maioria, a descrição de tipos legais denotativos da prática de gravíssimos atos de improbidade, especialmente os atos de enriquecimento ilícito manifestados pelas condutas delituosas expressas nos artigos 312, 315, 316, 317 e 318 do Código Penal. Não se pode olvidar que ímprobo é tanto o funcionário público[31] desonesto como o incompetente, que lesa o erário, dolosa ou culposamente, no exercício da função, constituindo o dever de probidade, por conseguinte, no respeito à honestidade e no alcance da eficiência funcional mínima.[32] Aliás, não são poucas as notícias da prática de atos de improbidade por parte de agentes públicos, em todos os níveis estatais, enodoando a Administração Pública e colocando em risco o próprio Estado Democrático de Direito, erigido em dogma fundamental pelo artigo 1.º da Constituição da República Federativa do Brasil.[33]

Os crimes mencionados no capítulo em epígrafe são denominados funcionais (delicta in officio) porque praticados pelo funcionário público no exercício de suas funções.[34] Classificam-se em próprios e impróprios ou mistos. Os primeiros requerem como elemento normativo a qualidade de funcionário público, sendo que na ausência da referida elementar torna-se o ato atípico (v.g., o crime de prevaricação). Os impróprios são aqueles que se caracterizam não só pelo atentado ao dever funcional, mas também pela presença de um crime comum – v.g., o delito de peculato que, ao lado da qualidade do funcionário público, exige os elementos caracterizadores do delito de apropriação indébita). Frise-se, por oportuno, que há outros delitos funcionais situados fora do capítulo em estudo, como aqueles descritos nos artigos 150, § 2.º, 151, § 3.º, 268, parágrafo único, 289, § 3.º, 290, parágrafo único, 295, 296, § 2.º, 297, § 1.º, 300 e 301 do Código Penal, visto que os crimes funcionais são assim definidos não pela inserção no capítulo em estudo, mas pelo fato de terem sido praticados por funcionário público no exercício da função ou que tal qualidade do agente tenha levado o legislador a qualificar o delito.

Outrossim, importa agregar que, ao lado do ilícito penal praticado pelo funcionário público, há também o ilícito administrativo, com sanções específicas, podendo ocorrer, por conseguinte, a cumulação de reprimendas (penal e administrativa) ao mesmo caso concreto. Reconhece a melhor doutrina que a diferença entre ambos, inclusive no que tange às sanções, não é ontológica e sim apenas de grau, de quantidade. Assim, quando o ato praticado denota maior gravidade, ferindo substancialmente o interesse público, tutela-se o bem jurídico no âmbito do Direito Penal, enquanto aquele ato que não se reveste de maior importância é apenado administrativamente; logo, no cotejo entre ambos, pode-se concluir que a falta disciplinar é um minus em relação ao ilícito penal. Assim, a despeito da prevalência da decisão prolatada pelo juízo penal sobre o mesmo fato concreto também julgado pela Administração, eventual absolvição obtida pelo acusado naquele juízo não constitui óbice à condenação administrativa, quando o fato, por si só, constitui falta disciplinar. Cite-se, como exemplo, o delito de prevaricação, em que o acusado, apesar de absolvido pela não-comprovação de que sua conduta foi motivada para a satisfação de interesse ou sentimento pessoal, pode ser condenado administrativamente pela desídia ou retardamento do ato de ofício.

O crime de peculato inicia o capítulo dos crimes praticados por funcionário público contra a administração em geral, podendo ser definido como “a apropriação, desvio ou subtração de coisa móvel pública ou particular, praticados pelo funcionário público, em razão de seu cargo ou valendo-se dessa qualidade”.[35]

O mencionado delito, com a referida denominação, tem seu nascedouro no Direito romano, quando se caracterizava pela subtração de coisas pertencentes ao Estado. Aliás, tanto o Código de Hamurabi como o Código de Manu já tratavam das subtrações de bens pertencentes ao rei, apenando o agente com a morte.[36] O nome peculatus ou depeculatus está sedimentado no fato de que o gado (pecus) constituía o patrimônio mobiliário mais importante da coletividade àquela época, tendo sido erigido em meio de pagamento ou moeda primitiva e sendo, por conseguinte, sinômino de riqueza entre os romanos e os povos de outras sociedades primitivas. Aliás, as moedas, inicialmente, eram elaboradas com peles de animais, surgindo, posteriormente, as de metal, com a inserção da imagem de um boi.

Havia, ainda, o costume de se oferecerem bois e carneiros em sacrifício aos deuses pagãos. O furto desses animais era o que ocorria com mais freqüência na época, tanto que a subtração de gado público deu lugar ao nome peculatus.[37] O peculato foi inserido no mesmo grupo do sacrilegium (furto de bens pertencentes aos deuses), já que os romanos não distinguiam juridicamente os bens divinos daqueles pertencentes ao Estado.[38]

Posteriormente, o delito de peculato passou a compreender toda subtração de metais ou moedas pertencentes ao erário da comunidade romana ou de outra caixa pública, conduta essa que expressava a forma mais rotineira do peculato naqueles tempos e também a mais importante, sendo comumente praticada pelas autoridades e por seus subalternos.

Assinale-se que, ao erigir o peculato à figura de delito autônomo, o Direito Penal romano não o caracterizou pela qualidade especial do agente, que tanto poderia ser funcionário público como particular, e, sim, pela qualidade do bem móvel (pública, religiosa ou sacra) sobre o qual recaía a ação, enfocando-o sempre como delito contra o Estado.[39]

O crime em exame compreendia não só o furto como também a apropriação indébita, alcançando particularmente a quantia devida ao erário pelos funcionários encarregados da contabilidade, na soma resultante da tomada de contas (pecuniae residuae). Chegou-se, inclusive, a considerar peculato toda fraude cometida contra o erário, ainda que não representasse subtração ou desvio de dinheiro.[40]

Citem-se como exemplos de tal atividade delituosa o fato de autoridades competentes para o recebimento de uma dívida em favor do erário romano perdoarem ilegalmente a referida dívida; a alteração do valor da moeda cunhada nas oficinas do Estado, utilizando-se liga diversa daquela estabelecida em lei; a hipótese de se cunhar moeda pública acima da quantidade autorizada, visando beneficiar os funcionários encarregados de tal função; a manipulação fraudulenta dos livros da contabilidade pública ou o seu desaparecimento.[41]

Por ocasião do Império, as condutas nominadas quando praticadas contra bens do Imperador também constituíam peculato, já que os bens deste se equiparavam aos do Estado.

O peculato praticado contra os fundos municipais era punido com base nos estatutos locais. No entanto, a partir de Trajano e Adriano, o peculato municipal foi equiparado ao público.[42]

O delito em exame foi reprimido inicialmente com a pena capital, ao lado do sacrilégio, passando-se, ao depois, para a aplicação da interdictio aquae et ignis, a deportação e o confisco. Contudo, por ocasião do Império, a pena capital voltou a ser aplicada ao peculato praticado pelos magistrados.

A repressão ao peculato foi ditada no Direito romano pelas Lex Julia peculatus, Lex Julia de residuis, além das leis Calpúrnia e Conélia.[43]

A ação penal, no tocante ao crime em exame, podia ser interposta inclusive em relação aos herdeiros do agente.

Também em Atenas os depositários das autoridades públicas que subtraíam dinheiro do Estado eram sancionados com a morte, sendo a pena capital substituída pela pecuniária no caso de o arrecadador incorrer em mora no recolhimento do dinheiro estatal.

Na Idade Média manteve-se a aplicação de penas cruéis ao peculatário. Cite-se o exemplo do Código de Florença, no qual se previa que aquele que empreendesse fuga com dinheiro público deveria ser amarrado à cauda de um burro e arrastado pelas vias públicas da cidade.[44] Em Veneza, os condenados pelo crime de peculato tinham seus nomes esculpidos numa prancha de mármore, como infâmia eterna. Alguns estatutos, no entanto, aplicavam as mesmas reprimendas destinadas aos ladrões. As reprimendas previstas para o referido delito foram mitigadas apenas com o advento do movimento humanista do século XVIII.

Na Espanha, as Partidas e as Recompiladas puniam rigorosamente o peculato perpetrado pelo tesoureiro, o arrecadador e o juiz, juntamente com os cúmplices, cujo delito consistia em furtar dinheiro do erário.

Os Códigos italianos (o das Duas Sicílias, de 1819; o Toscano, de 1853, e o Sardo, de 1859) também reprimiam com certo rigor o peculatário.[45]

Em França, muitos peculatários foram condenados à morte, uma vez que o delito atingiu índice alarmante. Os editos baixados em 1530, 1532 e 1540 determinavam que aquele que praticasse fraude nas finanças públicas deveria ser enforcado. A Ordenança de 1629 disciplinou de forma abrangente as diversas formas de subtração do dinheiro público, utilizando-se freqüentemente da pena de morte. O peculato foi ainda severamente reprimido durante o reinado de Luís XIV, com as Ordenanças de 5 de maio de 1690 e de 2 de junho de 1701. Posteriormente, como a severidade da reprimenda não conseguiu arrefecer a prática de tal crime, as penas foram mitigadas, sendo inclusive decretada uma anistia geral para os acusados desse crime em 1717. O Código Penal de 1810, por sua vez, não se esqueceu de reprimir os defraudadores dos cofres públicos franceses.

As Ordenações Filipinas tratavam do peculato no Título LXXIV, do Livro V, sob a rubrica Dos Officiaes del-Rey, que lhe furtão, ou deixão perder sua Fazenda per malicia.[46] O Código de 1830, por sua vez, previu o aludido crime no Título VI (segunda parte), que tratava dos crimes contra o thesouro publico e propriedade publica, mais precisamente no artigo 170.[47] O Código de 1890 inseriu o peculato no Título V, atinente aos crimes contra a boa ordem e administração publica, nos artigos 221 a 223.[48] Os contínuos desfalques promovidos nos cofres públicos levaram o legislador penal a alterar várias vezes a aludida normação, para clarear o seu conteúdo e majorar as penas, culminando por editar o Decreto 4.780, de 27 de dezembro de 1923, cujos artigos 1.º a 4.º passaram a fazer parte da Consolidação das Leis Penais, como artigos 221, 222 e 223.

O Código de 1940, embora seguisse o diploma italiano como modelo básico, dele se afastou, não distinguindo bens públicos e particulares. Com efeito, o Código italiano denomina peculato tão-somente a conduta que recai sobre um bem público, reservando a denominação de malversação para a ação do agente que lesa um bem particular, quando se encontra este sob a tutela da Administração Pública.

2.         Bem jurídico protegido e sujeitos do delito

No tipo em exame afloram não só o interesse em preservar o patrimônio público, mas principalmente a finalidade de resguardar a probidade administrativa, cuja importância, inclusive, foi cristalizada pela Constituição da República de 1988 (art. 37, caput e § 4.º). Não se pode olvidar que a eficácia funcional do Estado depende precipuamente da honestidade e da eficiência com que os agentes públicos atuam no seu mister, já que, como longa manus daquele, suas atividades refletem positiva ou negativamente na coletividade, no que tange à formação moral e política dos cidadãos e no respeito que estes devem ter para com os entes públicos, essencial para a própria solidez do Estado Democrático de Direito, planificado pela Constituição da República Federativa do Brasil.[49]

Com efeito, o funcionário probo, que cumpre seu desiderato visando atingir sempre o interesse público, alcança a admiração dos cidadãos, que passam não só a referendar os seus atos, como também a respeitá-lo. Contudo, quando o funcionário público (lato sensu) envereda por caminhos escusos, buscando apenas, com os citados atos, o enriquecimento ilícito ou a mera satisfação pessoal ou de outrem, abusando do exercício da função, o próprio ente público cai em descrédito perante os cidadãos. Estes passam a vê-lo como um mero instrumento colocado a serviço dos detentores do poder político e econômico e de seus apaniguados, com efeitos nefastos para a sociedade, como o desrespeito dos cidadãos para com a lei e os bens públicos, a má-formação de novos agentes públicos, o estímulo à sonegação fiscal e o incremento generalizado da corrupção administrativa, entre outros.[50]

Defende-se, ainda, que aqui a tutela penal deve ser enfocada sob dois aspectos, um de caráter genérico e outro de caráter específico. No tocante ao primeiro, objetiva-se velar pelo normal funcionamento da administração, enquanto no segundo há o interesse específico em se proteger os bens móveis de propriedade do erário e o dever do funcionário em velar pelo patrimônio público.

Acrescente-se que, embora não se possa discrepar do entendimento que enaltece a relevância da tutela da probidade administrativa, dissente-se, no entanto, da tese que admite a prática do peculato sem a correspondente lesão patrimonial, já que o tipo de injusto a que se refere o artigo 312 requer necessariamente um dano patrimonial à Administração Pública, quer se trate de dano emergente, quer se trate de lucro cessante ou mesmo a obrigação de ressarcir o particular, no caso de malversação.[51]

Sujeito ativo do crime em estudo é o funcionário público ou o agente a ele equiparado (art. 327, § 1.º), tratando-se de crime próprio ou especial. No entanto, por se tratar de elementar do crime de peculato, comunica-se essa circunstância ao particular que atue como co-autor ou partícipe do delito, em face do que dispõe o artigo 30 do Código Penal.

Não há necessidade, porém, para a caracterização do concurso de agentes no crime funcional, de que o funcionário público (intraneus) seja o autor, bastando para a configuração delitiva a sua mera participação. 

Ressalte-se, contudo, que, se o particular (extraneus) ignora que o sujeito qualificado é funcionário público, não responderá pelo crime de peculato, podendo ser aplicado, no caso, o disposto no artigo 29, § 2.º, do Código Penal (cooperação dolosamente distinta).

Como o tipo de injusto exige como um dos seus elementos que o agente pratique a conduta delitiva em razão do cargo que ocupa, esse exercício deve ser precedido de regular nomeação oficial. De modo que, no caso de mera ocupação de fato do cargo público, como no caso da usurpação de função, além do delito do artigo 328, o agente poderá responder pelos crimes de furto ou estelionato, mas não pelo de peculato, salvo se a ocupação resulta de nomeação irregular reconhecida posteriormente, quando então será possível o reconhecimento da prática do crime funcional em análise.[52]

Sujeito passivo do crime é o Estado, representado pela União, Estados-membros, Distrito Federal, municípios e demais pessoas mencionadas no artigo 327, § 1.º, do Código Penal. Na hipótese de peculato-malversação,[53] o particular, a quem pertence o bem (dinheiro, valor ou coisa), sobre o qual recai a conduta do agente, figura como sujeito passivo secundário.[54]

3.         Tipicidade objetiva e subjetiva

A conduta típica descrita no caput do artigo 312 (peculato próprio) consiste na apropriação ou no desvio de coisa pública ou particular, de que tem a posse, em razão de seu cargo, o funcionário público, em proveito próprio ou de outrem.[55]

Trata-se o caput do artigo 312 de tipo básico, misto cumulativo, anormal e incongruente.

O núcleo do tipo é representado pelos verbos apropriar e desviar. Em relação à primeira conduta (peculato-apropriação), à similitude do que ocorre na apropriação indébita, há o assenhoramento da coisa que se encontra na posse do agente, que passa a agir como se seu proprietário fosse, praticando atos de animus domini, quer retendo-a, quer alienando-a, quer consumindo-a etc. O ato de desviar (peculato-desvio) expressa a conduta pela qual o agente, em vez de direcionar o bem ao fim previamente determinado, promove o seu desencaminhamento, a sua distração, dando-lhe destinação diversa, visando ao seu próprio interesse ou ao de terceira pessoa.

O proveito, elemento normativo a que se refere o tipo de injusto, pode ser definido como qualquer vantagem material ou moral, não sendo necessariamente de natureza patrimonial. Evidentemente, quando tal desvio se concretiza em benefício da administração, não se configura o delito em epígrafe, podendo tal fato amoldar-se ao disposto no artigo 315 do Código Penal. Leciona-se, contudo, que, mesmo quando haja um interesse público no desvio perpetrado pelo agente, haverá peculato, desde que este ou terceiro tenha obtido um proveito pessoal, ainda que não patrimonial.

O peculato de uso, que se manifesta pelo uso momentâneo de coisa infungível sem o animus domini, coisa essa que se encontra na posse do funcionário, que a devolve intacta à administração após sua utilização, não configura o crime em análise, por não encontrar tipicidade na norma incriminadora. Pode ocorrer, no entanto, o peculato em relação ao combustível consumido, no caso de o agente se utilizar de uma viatura de determinado órgão público, da qual tem a posse.[56] O peculato de uso, porém, é tipificado pelo Decreto-lei 201/67, que trata dos crimes perpetrados por prefeitos e vereadores. Nesse sentido, incrimina-se o ato de “utilizar-se, indevidamente, em proveito próprio ou alheio, de bens, rendas ou serviços públicos” (art.1º, II). Sugere-se, como proposta de lege ferenda, que a incriminação dessa conduta seja estendida pelo legislador aos funcionários públicos em geral, pois não se pode tolerar que os bens, rendas e serviços públicos, afetados por uma finalidade comunitária, sejam utilizados, ainda que provisoriamente, para um fim não legalmente previsto. Nesses casos, é evidente que o uso indevido constitui desvio de poder, merecedor de sanção penal[57].

Verifica-se pela leitura da norma que o objeto material da conduta do artigo 312 recai sobre dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel. No tocante aos dois últimos, trata-se de elementos normativos do tipo de injusto de valoração extrajurídica e jurídica, respectivamente, enquanto o primeiro trata-se de elemento descritivo do tipo. Também o termo funcionário público figura como elemento normativo de valoração jurídica, definido no artigo 327 do Código Penal. Dinheiro denota a idéia de moeda corrente no país; valor é qualquer título ou documento conversível em dinheiro ou mercadoria, como ações, apólices, letras de câmbio, títulos da dívida pública, nota promissória etc., e bem móvel expressa toda coisa que se reveste de utilidade, passível de apreensão e remoção de um lugar a outro. O bem móvel a que se refere o tipo, tal como ocorre no delito de furto, alcança também a energia elétrica e as demais energias que tenham valor econômico.

A precisão do legislador, inclusive na menção ao dinheiro, teve por escopo dissipar equivocada interpretação de que o peculato somente atingia bem infungível, deixando claro que o crime em epígrafe pode ter por objeto tanto coisa fungível como infungível. Assim, se o funcionário tem sob sua responsabilidade dinheiro ou quaisquer outros valores pertencentes à Administração Pública, não pode deles se utilizar, ainda que por um breve momento, com a intenção de os repor, sob pena de praticar o peculato-desvio. É que o funcionário, por agir como longa manus da Administração, ao receber o bem fungível faz com que este ingresse diretamente no erário, não sendo considerado um mero depositário e tampouco podendo utilizar-se do dinheiro público para extirpar eventual crédito que tenha para com a Fazenda Pública, devendo aguardar o pagamento na época aprazada.[58]

Observe-se, ainda, que o peculato a que se refere o caput do artigo 312 exige como pressuposto material que o agente detenha a posse da coisa sobre a qual recai a conduta delitiva, já que a ausência da posse leva à caracterização do peculato-furto (art. 312, § 1.º).

Ao contrário da apropriação indébita, em que o legislador fez expressa menção à figura da detenção, no peculato o tipo objetivo refere-se tão-somente à posse. Contudo, esta deve ser enfocada em sentido amplo, alcançando não só a detenção, como também a posse indireta, compreendendo esta última o que se denomina disponibilidade jurídica, em que, apesar de não dispor da detenção material da coisa, o agente a exerce mediante ordens, requisições ou mandados, como ocorre com o chefe de determinado órgão público onde se guardam valores.

Não basta, porém, a existência da posse, sendo essencial que esta advenha do cargo ocupado pelo funcionário público, impondo-se, assim, uma relação de causa e efeito entre este e aquela. Cargo, elemento normativo do tipo, cuja valoração advém do Direito Administrativo, constitui “o lugar instituído na organização do serviço público, com denominação própria, atribuições e responsabilidades específicas e estipêndio correspondente, para ser provido e exercido por um titular, na forma estabelecida em lei”.[59] Resulta daí que a confiança depositada no funcionário que recebe a coisa decorre de mandamento legal ou de normação ditada por costume não vedada por lei; logo, não basta que o agente seja funcionário público; é imprescindível que receba o bem em face de atribuição legal, por ser titular de cargo público que lhe imponha tal mister. Assim, se “A” entrega determinada quantia em dinheiro para um agente do fisco, que lhe é conhecido, a fim de que este recolha o imposto devido à Fazenda Pública, e este se apropria da quantia, o fato não constitui peculato e, sim, apropriação indébita.[60]

Acrescente-se, ainda, como já foi explicitado, que há necessidade de que o funcionário ocupe legalmente o cargo público.

O elemento subjetivo do peculato, na modalidade de apropriação, está representado pelo dolo, consubstanciado na consciência e vontade do funcionário público de assenhorar-se do dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel de que tem a posse em razão do cargo, estando também presente o elemento subjetivo especial do injusto, caracterizado pelo fim especial de agir (proveito próprio ou alheio).[61]

Quanto ao peculato-desvio, exige-se também, além do dolo, representado pela consciência e vontade de empregar a coisa para fim diverso daquele determinado, o elemento subjetivo especial do tipo, consistente no especial fim de agir, que é a obtenção do proveito para si ou para outrem, ainda que sem o animus rem sibi habendi.

O delito é, portanto, próprio, material, plurissubsistente e funcional.

Por ser o peculato crime material, a sua consumação se perfaz, na hipótese de apropriação, no momento em que o funcionário inverte a titularidade da posse, passando a comportar-se em relação à coisa com animus domini. No caso de peculato-desvio, a consumação se concretiza quando o agente, traindo a confiança que lhe fora depositada, dá à coisa destinação diversa daquela determinada pela Administração Pública, visando beneficiar a si próprio ou a terceiro. Não há necessidade, porém, de que o agente obtenha o proveito visado, bastando, para a consumação, que ocorra o desvio.

Saliente-se, por oportuno, que, no caso de peculato de quantidade ou desfalque de caixa,[62] em que o funcionário se apodera de determinada quantia, dissimulando o desfalque com sucessivas apropriações ou desvios, não se exige, para a consumação delitiva, que haja a prestação de contas para que este incorra em mora, já que tal providência tem efeito apenas administrativamente para fins de fiscalização pelos órgãos adredemente instituídos para tal mister. Aliás, a aprovação de contas por parte de tais órgãos não constitui óbice à condenação do agente pela prática de peculato. Também não exclui o crime a prévia caução ou depósito de fiança prestados pelo funcionário por ocasião da investidura no cargo, já que se trata de providência acautelatória, no sentido de que a Fazenda Pública possa se garantir contra eventuais danos perpetrados por esse funcionário.

A tentativa é juridicamente admissível, em face da possibilidade de se fracionar o iter criminis, embora seja difícil a sua caracterização.[63]

4.         Peculato-furto

O artigo 312, § 1.º, traz a figura do peculato-furto, que se dá quando o funcionário público, embora não dispondo da posse do dinheiro, valor ou qualquer bem móvel pertencente à Administração Pública ou a particular, o subtrai, ou concorre para que outrem pratique a subtração, visando a proveito próprio ou alheio, e valendo-se, para tanto, da facilidade propiciada pela condição de funcionário.

Trata-se de tipo derivado, misto cumulativo, anormal e incongruente.

O bem jurídico tutelado e os sujeitos do delito não sofrem nenhuma alteração em relação à figura em exame, havendo particularidades dignas de nota quanto à tipicidade objetiva.

Verifica-se que o tipo de injusto não exige que o agente detenha a posse da res em razão do cargo que ocupa, mas que a qualidade de funcionário público lhe propicie a subtração pela facilidade[64] com que transita no órgão público em que exerce a sua atividade laborativa.

A ação desvalorada admite duas modalidades. Na primeira, o próprio agente executa materialmente a conduta expressa pelo verbo reitor do tipo (subtrair),[65] de forma que ele mesmo subtrai a coisa visada; v.g., o lançador da Prefeitura, ao observar que o tesoureiro deixou o cofre aberto, subtrai dali determinada quantia em dinheiro.[66] Na segunda, o peculatário apenas concorre para que terceira pessoa subtraia o bem, tratando-se, no caso, de concurso necessário, em que o funcionário público participa da subtração engendrada por outrem, como na hipótese de um policial de determinado distrito policial que distrai a atenção do responsável pela guarda das armas estatais daquela unidade para que terceira pessoa ingresse naquela seção e subtraia determinada arma. Como já foi explicitado, a qualidade de funcionário público, por se tratar de elementar do tipo, comunica-se ao extraneus. Observe-se que, no caso de o funcionário público, a sós ou acompanhado, ingressar criminosamente na repartição pública, v.g., mediante destruição ou rompimento de obstáculo, subtraindo dali determinado bem, há furto qualificado e não peculato, já que a qualidade de funcionário não foi o fator preponderante para o êxito da consumação delitiva.

A consumação se perfaz com a almejada subtração do bem visado, sendo possível a tentativa por ser o iter criminis fracionável.

A tipicidade subjetiva está representada pelo dolo, manifestado pela consciência e vontade de praticar quaisquer das condutas incriminadas, com a ciência da facilidade propiciada pela condição de funcionário público, acrescido do elemento subjetivo especial do injusto representado pelo fim especial de obter proveito próprio ou alheio.

5.         Peculato culposo

Rompendo com seu modelo legislativo, que é o Código Penal italiano, a lei brasileira adotou a figura do peculato culposo no artigo 312, § 2.º, inexistente no diploma peninsular, recebendo em tal aspecto inegável influência do Direito espanhol anterior à ultima reforma penal. O crime em exame foi inserido inicialmente no artigo 5.º, § 1.º, da Lei 2.110/1.909 e no artigo 3.º, § 1.º, do Decreto 4.780/1923, sendo acolhido pelo artigo 222, a, da Consolidação das Leis Penais.[67]

Pode ser definido como a conduta do funcionário público que, faltando com o dever de cuidado a que estava obrigado pelas circunstâncias, dá causa ao peculato descrito no caput ou no § 1.º ou mesmo à subtração perpetrada por outrem, agindo, destarte, com imprudência, negligência ou imperícia.

Trata-se de tipo derivado, simples e anormal.

O bem jurídico tutelado é o mesmo do tipo básico, havendo particularidades no tocante ao sujeito ativo, à tipicidade objetiva e à subjetiva.

Verifica-se inicialmente que o legislador expressa no tipo uma conduta culposa do funcionário público que depende, para a sua caracterização, de uma ação dolosa de terceiro. Trata-se, destarte, de um concurso não-intencional, já que na hipótese o funcionário não atua com vontade de concorrer com a própria ação para a conduta dolosa de outrem. Não é por outra razão que não se pode falar em participação dolosa em crime culposo, ou em participação culposa em crime doloso. Acrescente-se que a conduta culposa do funcionário, ainda que lesiva à Administração Pública, é um indiferente penal, caso não esteja ela relacionada à ação dolosa de terceiro.

Podem ser enfocadas três modalidades de ação delituosa. Na primeira o funcionário, por culpa, concorre para a apropriação, o desvio ou a subtração perpetrada por outro funcionário; na segunda, o funcionário, por culpa, concorre para que um particular previamente ajustado com outro funcionário pratique uma das condutas supracitadas; na terceira, o funcionário, também por culpa, dá causa à subtração perpetrada por um particular.

Argumenta-se que o delito a que se refere o tipo de injusto deve constituir uma das espécies de peculato, já que o § 2.º deve ser interpretado em conjunto com o caput e com o § 1.º.[68] Dissente-se, contudo, de tal entendimento, visto que soaria estranho o fato de o legislador punir o funcionário que permite, culposamente, a prática de peculato e quedar-se inerte quando tal agente dá causa, por culpa, a um furto ou a outro crime patrimonial perpetrado na sua repartição, v.g., na hipótese em que o agente, por desídia, deixa aberta a porta do cofre que se encontra sob sua responsabilidade, ausentando-se por alguns instantes da sua seção, permitindo, assim, que um particular subtraia valores do Estado ali contidos.[69]

Aliás, ao comentar dispositivo semelhante do Código Penal argentino (art. 262), aduz a doutrina daquele país que o agente que pratica a conduta dolosa poderá ser ou não funcionário público e, “se é um particular, cometerá simplesmente um delito de furto”.[70]

Ressalte-se, ainda, que não basta a condição de funcionário público para que a conduta culposa do agente se amolde ao tipo em epígrafe; é imprescindível que haja uma relação funcional entre este e o bem objeto do delito, nas mesmas condições da figura descrita no caput do artigo, e que a conduta do funcionário tenha propiciado a prática delitiva do terceiro numa interdependência de causa e efeito.[71]

O crime se consuma no momento em que se concretiza a ação delituosa de outrem. Se o terceiro não logra consumar o delito, subsiste o peculato por parte do funcionário público, porque o tipo legal não distingue as formas consumada e tentada.

6.         Peculato qualificado

O peculato é qualificado quando perpetrado, na forma dolosa, por “ocupantes de cargos em comissão ou de função de direção ou assessoramento de órgão da administração direta, sociedade de economia mista, empresa pública ou fundação instituída pelo poder público” (art. 327, § 2.º), quando a pena é aumentada da terça parte.[72]

Trata-se de majorante que influencia na medida da culpabilidade, denotando maior reprovabilidade pessoal da conduta típica e ilícita, já que os agentes detentores de cargos em comissão, função de direção ou assessoramento não só têm amplo domínio sobre todos os bens do ente público ou paraestatal para qual trabalham, mas também gozam de elevada confiança pelo poder estatal, em face da relevância de suas atividades, constituindo a prática do ilícito, em tais circunstâncias, um gravíssimo atentado ao princípio da moralidade administrativa e ao dever de probidade.

7.         Pena e ação penal

A sanção penal prevista para o peculato próprio ou peculato-furto é de reclusão, de dois a doze anos, além da pena pecuniária.[73] No caso de peculato qualificado, como já foi dito, a pena é aumentada da terça parte. A ação penal é pública incondicionada.

Quanto ao peculato culposo, a sanção é de três meses a um ano de detenção e a ação penal é também pública incondicionada.

8.         Extinção da punibilidade e causa especial de diminuição da pena no peculato culposo

Dispõe o artigo 312, § 3.º, que, no peculato culposo, a reparação do dano constitui causa de extinção de punibilidade, se ocorre antes do trânsito em julgado da sentença ou do acórdão condenatório. Caso a reparação se concretize após a sentença condenatória atingir a imutabilidade, a pena é reduzida pela metade.

A reparação aludida pelo legislador deve ser completa, podendo se manifestar pela restituição da res ou operar-se pela indenização do valor correspondente ao dano causado.

Assevere-se, contudo, que a extinção da punibilidade, em tal caso, não constitui óbice à aplicação das sanções disciplinares pertinentes ao caso concreto. 

I – B. Violação de sigilo funcional

Art. 325. Revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação:

Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, ou multa, se o fato não constituir crime mais grave.

§ 1.º Nas mesmas penas deste artigo incorre quem:

I – permite ou facilita, mediante atribuição, fornecimento e empréstimo de senha ou qualquer outra forma, o acesso de pessoas não autorizadas a sistemas de informações ou banco de dados da Administração Pública;

II – se utiliza, indevidamente, do acesso restrito.

§ 2.º Se da ação ou omissão resulta dano à Administração Pública ou a outrem:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. 

1.         Introdução

No que tange à legislação estrangeira, há precedentes do delito de violação de sigilo funcional na lei penal italiana (art. 191 do Código toscano de 1853, art. 177 do Código de 1889 e art. 326 do Código Rocco); no artigo 353, alínea b, § 1.º, do Código alemão; no artigo 121 do Código norueguês; no artigo 152 do Código dinamarquês e no artigo 320 do Código suíço.[74]

Também o Código Criminal do Império já tratava do mencionado crime, no Título V (Dos crimes contra a boa ordem e administração pública), Capítulo I (Prevaricações, abusos e omissões dos empregados públicos), Secção II (Irregularidade de conducta), mais precisamente no artigo 164.[75]

O Código de 1890, de seu turno, não prestigiou a aludida infração, inserindo a conduta aqui enfocada na fórmula genérica do artigo 192,[76] nivelando indevidamente a proteção ao sigilo profissional (interesse individual) com o sigilo inerente aos negócios do Estado (interesse público).[77]

O legislador de 1940 extraiu o tipo de injusto em análise da norma geral contida no artigo 154 do Código Penal, que trata da violação de segredo profissional, em face da necessidade de se proteger o sigilo que deve gravitar em torno de determinados atos praticados pela Administração Pública ou de coisas que se encontram em seu poder.[78]

2.         Bem jurídico protegido e sujeitos do delito

O bem jurídico protegido é o normal funcionamento da Administração Pública, resguardando o seu interesse de que não sejam divulgados determinados segredos de relevância para a perfeita atuação funcional do Estado e dos demais entes descritos no artigo 327, § 1.º, protegendo-se, ainda, o interesse do próprio particular, que poderia ser lesado com a indevida publicidade de dados sigilosos que estão ao alcance restrito do ente público. Visa também assegurar que o funcionário a quem foi confiado o segredo estatal mantenha o seu dever de lealdade.[79]

Não se pode olvidar que, embora os atos praticados pela Administração Pública sejam regidos, em regra, pelo princípio da publicidade, grande parte da sua atuação não pode ser divulgada, sob pena de se expor a perigo a sua eficácia ou oportunidade.[80]

Sujeito ativo do crime em exame é o funcionário público que revela ou facilita a revelação de fato de que deva guardar segredo. Frise-se, inclusive, que o aposentado pode ser sujeito ativo do referido delito, já que “este não se desvincula totalmente de deveres para com a Administração”.[81] No entanto, aquele que foi demitido ou exonerado, por haver cessado o vínculo jurídico com o Estado, não pratica o crime aqui enfocado. Descuidou o legislador, nesse caso, no sentido de determinar que tais agentes continuassem com o dever de guardar o sigilo funcional, como fizeram com eficiência os Códigos italianos e suíço, nos artigos 360 e 320,1, respectivamente.

Admite-se a co-autoria até mesmo com o terceiro beneficiado com a informação revelada, caso tenha ele instigado o funcionário a praticar o crime em análise. Se o funcionário agiu espontaneamente, o extraneus não responderá pelo delito.

Sujeito passivo do delito é o Estado, representado pela União, Estados, Distrito Federal, municípios e as demais pessoas mencionadas no artigo 327, § 1.º, do Código Penal. Eventualmente, poderá ser o particular, caso tenha ele sido lesado com a conduta delitiva.

3.         Tipicidade objetiva e subjetiva

A conduta típica consiste em revelar ou facilitar a revelação de fatos de que o agente teve ciência no exercício do cargo (elemento normativo de valoração jurídica), os quais devam permanecer em segredo.

Trata-se de tipo básico, misto alternativo, anormal e congruente.

Segredo funcional, elemento normativo do tipo, “é tudo o que não é nem pode ser conhecido senão de determinadas pessoas, ou de certa categoria de pessoas, em razão do ofício”.[82]

O núcleo do tipo está representando pelos verbos reitores revelar ou facilitar, que expressam duas modalidades delitivas. Tem-se a primeira quando o funcionário público comunica pessoalmente ao terceiro o fato do qual deveria guardar segredo, podendo a conduta ser perpetrada de forma escrita ou oralmente.Na segunda modalidade, o agente transmite o segredo de forma indireta, fornecendo ou inculcando os meios necessários para que o terceiro obtenha o segredo funcional, podendo tal conduta ser praticada também por omissão, ao contrário da primeira, que somente admite a forma comissiva.

Em qualquer delas, exige-se que o agente tome conhecimento de algum fato que deva permanecer em segredo, em razão do exercício da função inerente ao cargo que ocupa. É imprescindível, por conseguinte, que no âmbito de sua atribuição esteja inserido o conhecimento do fato de que deva guardar segredo, de forma que, se a cientificação do segredo não advém do exercício funcional, v.g., na hipótese de o agente folhear um documento sigiloso na mesa de um colega de trabalho, eventual revelação não se amolda ao tipo de injusto ora analisado.[83]

Importa agregar, ainda, que não há necessidade de que o segredo seja perpétuo, podendo a vedação de revelá-lo ser temporária e, mesmo que posteriormente a própria Administração resolva divulgá-lo, esse fato não retira a tipicidade da conduta.

O segredo funcional deve ser de interesse relevante para a Administração Pública e de um número limitado de pessoas, sob pena de não se configurar o delito. Também deve o fato protegido pelo sigilo ser legítimo, já que a ilegitimidade do fato afasta a proteção penal.

O elemento subjetivo está representado pelo dolo, consubstanciado na vontade e consciência do agente em transmitir a outrem fato que deva permanecer em segredo, e cujo conhecimento decorre do seu exercício funcional.

Pode, contudo, a conduta típica estar amparada por uma causa justificante, v.g., quando o agente necessita revelar o segredo para se defender de determinada imputação criminosa, ou mesmo para colaborar na elucidação de um crime de ação pública.

Por se tratar de crime formal, o delito se consuma quando o agente revela ou facilita a revelação do segredo, bastando que somente uma pessoa dele tome conhecimento, não sendo imprescindível a ocorrência do dano efetivo, já que o tipo de injusto se satisfaz com o dano potencial ínsito à revelação do segredo.

A tentativa é juridicamente possível, em qualquer uma das modalidades, sendo pertinente observar que, no caso da revelação, ela poderá se concretizar quando a conduta delitiva se manifeste na forma documental, em que eventual missiva destinada ao interessado seja interceptada, v.g., pelo chefe da repartição, sendo repelida, contudo, quando a manifestação do segredo se dê na forma oral. Também na hipótese de facilitação, não será possível a conatus quando se tratar de conduta omissiva (delito omissivo próprio).

O crime pode ser classificado, portanto, em próprio, funcional, subsidiário e formal.

4.         Permissão de acesso não autorizado a sistema informatizado

A figura em exame (art. 325, § 1.º, I) foi introduzida pela Lei 9.983, de 14 de julho de 2000, sendo que no projeto original a tutela penal recaía tão-somente sobre os sistemas informatizados ou bancos de dados da Previdência Social. Mas seu alcance normativo foi ampliado, através de emenda, para toda a Administração Pública.

A conduta incriminada consiste em permitir ou facilitar, mediante atribuição, fornecimento e empréstimo de senha, ou por qualquer outra forma, o acesso de pessoas não autorizadas a sistemas de informações ou banco de dados da Administração Pública.

4.1       Bem jurídico tutelado e sujeitos do delito

O bem jurídico tutelado não difere daquele a que se refere o caput.

Sujeito ativo do delito é o funcionário autorizado que tem privilégio de acesso irrestrito ou alto[84] ao sistema informatizado ou banco de dados da Administração Pública, mediante a utilização de código de identificação e, geralmente, de uma senha, podendo haver o concurso com o extraneus (pessoa não autorizada – pode ser também funcionário público) caso tenha ele instigado o funcionário a praticar a conduta aqui enfocada. Se este agiu espontaneamente, o terceiro não responde pelo delito.

Sujeito passivo é o mesmo da figura descrita no caput.

4.2       Tipicidade objetiva e subjetiva

Trata-se essa figura delitiva de tipo derivado, misto alternativo, anormal e congruente. O núcleo do tipo está representado pelos verbos permitir ou facilitar, denotando o primeiro o sentido de consentir, admitir, tolerar etc., enquanto facilitar expressa a conduta de auxiliar, de coadjuvar.

Exige-se que a conduta seja perpetrada através de atribuição (concessão), fornecimento (entrega) e empréstimo (entrega de algo a alguém com a obrigação do tomador de restituí-lo) de senha ou qualquer outro código de acesso ao banco de dados ou sistema de informações (vide comentário supra aos artigos 313-A e 313-B).[85]

Na ação de permitir, o agente consente que pessoa não autorizada acesse informações vedadas ao usuário comum, fornecendo-lhe o código secreto para que atinja tal fim, enquanto na ação de facilitar, o próprio funcionário ajuda o extraneus a obter as informações, após fornecer-lhe o código de acesso.

O legislador autoriza a aplicação de interpretração analógica ao utilizar-se da expressão ou qualquer outra forma. Assim, pode o agente permitir o acesso do extraneus à área restrita, desligando todo o sistema de segurança da máquina, saindo a seguir da sua sala ou gabinete, para que o interessado possa ali ingressar e obter a informação pretendida, além de outras formas de conduta análogas à atribuição, fornecimento e empréstimo de senha.

O elemento subjetivo do tipo está representado pelo dolo, manifestado pela consciência e vontade de permitir ou facilitar o acesso do extraneus ao sistema de informações ou ao banco de dados, podendo ser admitido o dolo eventual quando o agente, após acessar a área restrita, se retira da sua sala ou do seu gabinte sem acionar o sistema de segurança, antevendo e não se importando com o fato de que outrem ali ingresse e obtenha informações sigilosas. O tipo não comporta a forma culposa.

O delito, por ser formal, se consuma no exato momento em que o extraneus acessa a informação vedada do banco de dados ou do sistema de informações. Não se faz mister a superveniência de qualquer dano à Administração, por se tratar de crime de perigo.

A tentativa é admissível, por ser o delito plurissubsistente.

5.         Utilização de acesso não autorizado a sistema informatizado

A figura em exame (art. 325, § 1.º, II) foi introduzida pela Lei 9.983, de 14 de julho de 2000, sendo que no projeto original a tutela penal recaía tão-somente na utilização indevida de dados restritos da Previdência Social, tendo sido seu alcance normativo ampliado através de emenda para toda a Administração Pública.

5.1       Bem jurídico tutelado e sujeitos do delito

O bem jurídico tutelado é o mesmo da figura anterior.

Sujeito ativo é o funcionário autorizado a manipular o sistema de informações e o banco de dados da Administração Pública. 

Sujeito passivo é o mesmo do caput.

5.2       Tipicidade objetiva e subjetiva

A conduta típica consiste em utilizar-se indevidamente o funcionário público do acesso restrito ao sistema de informações ou banco de dados.

Trata-se de tipo derivado, simples, anormal e congruente.

Para a manipulação desses sistemas, a Administração seleciona agentes capacitados tecnicamente, conferindo-lhes acesso irrestrito (vide comentário sobre acesso irrestrito na figura anterior) aos dados sigilosos ali armazenados, que somente poderão ser utilizados no estrito interesse do ente público, de forma que o fornecimento das aludidas informações deverá ser precedido de severa formalidade, para que a sua divulgação passe previamente pelo funcionário competente para aferir a legalidade e a conveniência da sua utilização, que por sua vez deverá obedecer aos ditames legais que regulamentam o uso de tais dados.

A utilização indevida consiste no uso não autorizado de tais informações para outros fins que não o interesse administrativo, contrariando o agente as normas regulamentadoras da área, atentando contra o dever de lealdade que deve manter para com a Administração Pública. Recorde-se que a expressão indevidamente constitui elemento normativo do tipo, com referência específica à possível ocorrência de uma causa de justificação. Esse elemento, embora diga respeito à antijuridicidade, torna, com sua ausência, a conduta não só atípica como também permitida.

O elemento subjetivo do tipo está representado pelo dolo, manifestado na consciência e vontade do agente em utilizar-se indevidamente do acesso restrito, com o conhecimento de que está agindo de forma contrária às normas regulamentadoras da manipulação de dados sigilosos, sendo admissível, no caso, o dolo eventual. O tipo não comporta a forma culposa.

Por se tratar de crime formal e de infração de perigo, basta a mera utilização indevida do acesso pelo funcionário para que o delito se aperfeiçoe.

A conatus é admissível apenas quando a conduta se perfaz na forma documental. Cite-se o exemplo do funcionário que imprime uma informação constante do acesso restrito no banco de dados para levá-la a determinada pessoa, sendo interceptado ao sair da repartição.

6.         Figura qualificada

De acordo com o § 2.º do dispositivo ora analisado, se, em face da conduta do agente, advém dano à Administração Pública ou mesmo ao particular, o crime torna-se qualificado, sendo mais severamente punido em razão da maior reprovabilidade pessoal da ação típica e ilícita.

7.         Violação de sigilo funcional e outros delitos

Pelo que se depreende do preceito secundário da norma incriminadora em exame, o delito estudado é expressamente subsidiário, de forma que a conduta se amolda a outro tipo de injusto quando constitui crime mais grave.

Assim, a revelação de segredo que atente contra a segurança nacional encontra tipicidade nos tipos de injusto inseridos nos artigos 13, 14 e 21 da Lei 7.170/83. Se a revelação do segredo se refere a proposta apresentada em procedimento licitatório, a conduta amolda-se ao artigo 94 da Lei 8.666/93. Caso o sigilo violado trate de informações atinentes à energia nuclear, aplica-se o disposto no artigo 23 da Lei 6.453/77.

Assinale-se, ainda, que as normas especiais enfocadas são aplicadas, nos casos aqui nominados, em face do princípio da especialidade (lex specialis derogat legi generali).

O crime em epígrafe poderá ser praticado em concurso com os delitos de concussão ou de corrupção passiva, caso o agente tenha praticado a conduta para obter vantagem indevida.

8.         Figura qualificada

São aqui pertinentes as mesmas observações já feitas por ocasião da análise do crime de peculato qualificado.

9.         Pena e ação penal

A pena prevista para o crime em exame é de seis meses a dois anos de detenção, ou multa.[86]

A ação penal é pública incondicionada. Observe-se que esse delito passou a ser considerado infração de menor potencial ofensivo, em razão da inovação introduzida pela Lei 10.259 (Juizados Especiais Criminais Federais), que estendeu esse conceito para os delitos cuja pena máxima abstratamente cominada não ultrapasse dois anos. Assim, seu processo e seu julgamento são de competência dos Juizados Especiais Criminais. 

I – C. Tráfico de influência

Art. 332. Solicitar, exigir, cobrar ou obter, para si ou para outrem, vantagem ou promessa de vantagem, a pretexto de influir em ato praticado por funcionário público no exercício da função:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

Parágrafo único. A pena é aumentada da metade, se o agente alega ou insinua que a vantagem é também destinada ao funcionário.[87] 

1.         Introdução

O delito de tráfico de influência foi inspirado no Código Penal italiano, modelo do legislador de 1940, sendo oportuno agregar que a legislação brasileira anterior desconhecia o aludido delito.

Os glosadores e os práticos foram os primeiros a definir doutrinariamente esse crime, que no Direito intermédio cingia-se aos interesses do Poder Judiciário, sendo classificado entre os crimes de injúria e corrupção. Contudo, essa conduta já era reprimida no Direito romano, sendo conhecida a história da inflição da pena capital a Vetrônio Turin pelo imperador Alessandro Severo, em face da prática fraudulenta da exploração de prestígio junto ao governo romano.[88]

O delito em exame passou a figurar como crime autônomo inicialmente no Código das Duas Sicílias de 1819, no qual recebeu o nomen juris de millantato credito (art. 206), norma essa que ampliou o seu alcance no sentido de reprimir a conduta delitiva perpetrada em relação a qualquer categoria de funcionário. O referido crime passou a ser disciplinado autonomamente no artigo 189 do Código de Parma de 1820 e nos artigos 191 e 192 do Código de Este de 1855.

O Código toscano de 1853 dispôs sobre o crime em epígrafe no artigo 200, enquanto o Código sardo-italiano (1859) disciplinou-o nos artigos 313 e 314. O Código Zanardelli (1889), de seu turno, enfocou o delito em exame no artigo 204, enquanto o atual diploma italiano definiu a exploração de prestígio no artigo 346.

2.         Bem jurídico protegido e sujeitos do delito

A tutela penal visa garantir a honorabilidade e o prestígio da Administração Pública junto à comunidade, já que a conduta do agente a expõe ao descrédito perante os cidadãos, inculcando falsamente a idéia de que o exercício funcional do agente público seja motivado pela corrupção ou de que ele seja facilmente influenciável por ingerências ilícitas.[89]

Quando a conduta refere-se à falsa influência perante juiz, jurado, órgão do Ministério Público, serventuários da justiça, perito, tradutor, intérprete ou testemunha, o delito é aquele insculpido no artigo 357 do Código Penal (exploração de prestígio).

Sujeito ativo do crime pode ser qualquer pessoa, nada obstando que seja outro funcionário público.

Sujeito passivo do delito é o Estado, titular do bem jurídico penalmente tutelado, representado pela União, Estados-membros, Distrito Federal e municípios. Não incide aqui a norma inserida no artigo 327, § 1.º, do Código Penal, que só tem aplicação quando o sujeito ativo reveste-se da qualidade de funcionário público. Secundariamente, figura como sujeito passivo aquele que, após ser ludibriado pelo agente, dá-lhe ou promete-lhe a vantagem, já que incide sobre ele o prejuízo material decorrente da vantagem obtida pelo agente. Apesar da conduta do sujeito secundário, não é ele punido, por se tratar de crime putativo.[90]

3.         Tipicidade objetiva e subjetiva

Trata-se de tipo autônomo, misto alternativo, anormal e incongruente.

As condutas típicas alternativamente incriminadas estão representadas pelos verbos nucleares solicitar, que denota a ação de pedir, rogar, procurar; exigir, que expressa a conduta de ordenar, reclamar, determinar; cobrar, que tem o sentido de fazer ser pago; obter, que significa angariar, conseguir, receber, adquirir; ações essas que estão direcionadas a alguma vantagem objetivada pelo agente, para si ou para outrem, iludindo o adquirente da venditio fumi, alegando que irá influir junto ao exercício funcional de determinado agente público para que se atinja o fim colimado pelo aludido adquirente.

Trata-se de comportamento fraudulento, em que o artifício empregado é a inculcação do agente que afirma ter influência sobre o funcionário público e coloca a sedizente influência a serviço do interesse do iludido, em troca de vantagem ou da promessa da sua concreção. Exige-se evidentemente tal simulação, já que a participação dolosa do funcionário no caso implicaria a sua responsabilização por corrupção ou concussão. Quando o agente tem, de fato, influência junto a determinado funcionário e “sem estadeá-la ou proclamá-la desenvolve atividade junto àquele, não comete o delito em apreço”,[91] podendo, contudo, praticar outro, dependendo das elementares presentes.

Em face da fraude ínsita ao delito em epígrafe, registre-se que o crime de tráfico de influência constitui estelionato qualificado, em face do meio utilizado pelo agente, qual seja a fictícia influência sobre o exercício funcional de agente público.[92]

Embora o tipo exija que a fraude recaia sobre suposta influência no ato praticado por funcionário público, não há necessidade de que o funcionário seja pessoa determinada e de que seu nome seja mencionado ao iludido,[93] podendo tratar-se até mesmo de agente público incompetente para a realização do ato, ou mesmo imaginário.[94] Contudo, se o funcionário foi nominado ou de qualquer forma individualizado pelo agente, deve ele ser funcionário público, sob pena de não se configurar o delito, já que, ausente tal qualidade, não haverá atentado ao prestígio da Administração Pública, podendo configurar-se o delito de estelionato.

A conduta em epígrafe pode ser praticada também quando o agente alega ao iludido que tem influência sobre terceira pessoa, que, por sua vez, influenciará na prática de determinado exercício funcional por parte de agente público.

O objeto material da conduta é a vantagem ou promessa de vantagem, que na expressão normativa representa qualquer proveito ou benefício almejado pelo agente, podendo ser ela de qualquer natureza, seja material, seja moral ou sexual. A vantagem pode ser para o agente ou para terceira pessoa.

A redação do texto normativo com os novos verbos nucleares do tipo deu maior alcance ao tipo de injusto, expressando a preocupação do legislador com a repressão ao referido crime, pelo notório desprestígio causado à Administração Pública. 

O elemento subjetivo do tipo está representado pelo dolo, consubstanciado na consciência e vontade de solicitar, exigir, cobrar ou obter vantagem ou promessa de vantagem. A expressão “para si ou para outrem” indica a presença de elemento subjetivo especial do tipo.

Não é imprescindível que o agente tenha consciência de estar desprestigiando a Administração Pública.

Por se tratar de crime formal, nas três primeiras modalidades de conduta (solicitar, exigir e cobrar), o delito atinge a sua consumação no momento em que o agente pratica tais condutas, independentemente de outro resultado. Na modalidade de obtenção, que denota crime material, o delito se aperfeiçoa com o recebimento da vantagem ou com a promessa de concedê-la.

A tentativa é admissível, embora de difícil configuração.

O delito pode ser classificado, portanto, em comum, comissivo, de ação múltipla, formal (nas primeiras modalidades típicas) ou material (na hipótese de obtenção).

4.         Forma qualificada

Caso o agente, além de fraudar o iludido, no tocante à sedizente influência na prática de ato de ofício por parte de funcionário público, alegue ou insinue, ainda, que a vantagem também se destina a agente público, a reprimenda será aumentada da metade. Não se exige que o iludido acredite destinar-se a vantagem  também a funcionário público, bastando que alegue ou insinue tal fato.

Trata-se de majorante que influencia na medida da culpabilidade, com maior reprovabilidade da conduta do agente, considerando-se que esta atinge com maior intensidade o prestígio da Administração Pública, depreciando-a perante a comunidade, pela alegação de suborno de um seu funcionário.

5.         Tráfico de influência e outros delitos

Se a conduta fraudulenta refere-se à simulação de influência em relação a juiz, jurado, órgão do Ministério Público, funcionário do poder judiciário, perito, tradutor, intérprete ou testemunha, configura-se o delito definido no artigo 357 do Código Penal.

O delito de tráfico de influência absorve o estelionato, podendo a conduta amoldar-se ao tipo definido no artigo 171 do Código Penal, como já aclarado, caso o agente cite nominalmente ou individualize determinada pessoa que não se revista da qualidade de funcionário público.

Caso haja acordo de vontades entre o agente e o funcionário público, aperfeiçoa-se o delito de corrupção a que se referem os artigos 317 e 333 do Código Penal.

O tráfico de influência que atente contra a Administração Pública Militar se amolda ao tipo de injusto definido no artigo 336 do Código Penal Militar.

6.         Pena e ação penal

A pena prevista para o crime em epígrafe é de dois a cinco anos de reclusão, além da pena pecuniária, para a conduta descrita no caput, sanção que será majorada da metade caso ocorra a circunstância descrita no parágrafo único.[95]

A ação penal é pública incondicionada. 

I – D. Conceito penal de funcionário público

Art. 327. Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.

§ 1.º Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública.[96]

§ 2.º A pena será aumentada da terça parte quando os autores dos crimes previstos neste capítulo forem ocupantes de cargos em comissão ou de função de direção ou assessoramento de órgão da administração direta, sociedade de economia mista, empresa pública ou fundação instituída pelo poder público. 

1.         Conceito penal de funcionário público

Não há uniformidade entre os administrativistas quanto à conceituação de funcionário público e, dentre as várias teorias que o explicitam, destacam-se uma restritiva, definindo-o como aquele que exerce um poder de império e cujos atos praticados expressam autoridade, ou, no mínimo, certa parcela de discricionariedade na execução de uma norma jurídica, e outra ampliativa, que insere em tal conceito o agente que exerce profissionalmente uma função pública, ínsita ao ato de império, gestão ou técnica.[97] 

Visando assegurar o pleno interesse da Administração Pública e para que não subsistisse dúvida quanto ao alcance normativo, o legislador penal acolheu a noção extensiva de funcionário público, não exigindo do agente nem mesmo o exercício profissional ou permanente da função pública, bastando que esse exercício fosse transitório, ou mesmo sem remuneração atinente a cargo, emprego ou função pública.

Importa agregar que o termo funcionário público, que figura nos tipos legais como elemento normativo de valoração jurídica, já se encontra superado, pois a expressão denotava o atual servidor estatutário e se mantém em algumas leis antigas, como é o caso do Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado de São Paulo (Lei 10.261/68). Aliás, a Constituição anterior utilizou-se de tal nomen juris no Título I, Capítulo VII, Seção VIII (arts. 97 e seguintes), para referir-se ao servidor estatutário, detentor de cargo público criado por lei, sendo que a categoria somente existia na Administração direta, abrangendo, evidentemente, não só o Poder Executivo como também o Legislativo e o Judiciário. A Constituição de 1988 substituiu, contudo, a aludida expressão por servidor público, conforme se verifica no seu Título III, Capítulo VII (Da Administração Pública), Seção II (art. 39 e seguintes), e a mesma técnica legislativa foi seguida pela Lei 8.112, de 11 de dezembro de 1990, que dispôs sobre o Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União.

Retomando o texto normativo em exame, verifica-se que o artigo 327 faz expressa referência ao agente detentor de cargo, emprego ou função pública.

Cargo público, na expressa disposição do artigo 3.º da Lei 8.112/90, denota o “conjunto de atribuições e responsabilidades previstas na estrutura organizacional que devem ser cometidas a um servidor”.[98]

Emprego público é o serviço por prazo determinado, previsto na estrutura organizacional da Administração Pública para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público, com contrato em regime especial ou em confomidade com a Consolidação das Leis do Trabalho (art. 37, IX, CF).[99]

Função pública, por sua vez, “é a atribuição ou atividade específica ou um conjunto delas, cujo exercício o Poder Público incumbe a um agente administrativo ou a um conjunto deles”.[100] Inserem-se aí as funções de natureza permanente, que são aquelas referentes à chefia, direção, assessoramento ou outra atividade para a qual o legislador não criou o cargo respectivo, e que, geralmente, são de livre provimento e exoneração, delas tratando o artigo 37, V, da Constituição Federal.[101]

Ao referir-se a funcionário público, in genere, a norma em análise alcança todos os agentes públicos, desde os representantes dos três Poderes da República até o mais humilde servidor, incluindo-se aí até mesmo aqueles que exerçam transitoriamente determinada função pública, ainda que gratuita. Cite-se o exemplo dos jurados, expressamente equiparados pelo artigo 438 do Código de Processo Penal aos juízes de ofício para fins de responsabilidade criminal, e o dos mesários e componentes das Juntas Eleitorais, pelo que se depreende dos artigos 36 e 120 da Lei 4.737/65 (Código Eleitoral). Não são funcionários públicos, contudo, aqueles que exercem um munus público, como os curadores e tutores dativos, os inventariantes judiciais, entre outros, em que há prevalência de um interesse privado. Também não se inserem na qualidade de funcionários públicos os empregados de concessionários de serviços públicos. Apenas os permissionários, de acordo com o artigo 327, § 1.º, do Código Penal, foram equiparados a servidores públicos, para efeitos legais, consoante se verá a seguir.[102]

2.         Agentes equiparados a funcionário público

As múltiplas atividades do Estado contemporâneo levaram-no a descentralizar parte do serviço público, desencadeando, por conseguinte, o aparecimento de autarquias, fundações públicas e entidades paraestatais, que são inseridas no âmbito da Administração indireta.[103]

Assim, visando assegurar o interesse da Administração Pública também na área descentralizada,[104] o legislador penal equiparou a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública.

As autarquias são entes administrativos autônomos, “com personalidade jurídica de Direito público, com patrimônio próprio e atribuições típicas do Estado”.[105]

As fundações públicas compreendem um patrimônio, parcial ou totalmente público, dotado de personalidade jurídica de Direito público ou privado, e são instituídas por lei, com o escopo de atuarem em atividades do Estado na ordem social, “com capacidade de auto-administração, mantido o controle da Administração Pública, nos limites da lei”.[106]

Frise-se, por oportuno, que a norma em exame não faz referência explícita às autarquias e fundações públicas. No entanto, para o legislador penal, autarquia e ente paraestatal se equivalem,[107] não se podendo olvidar, ainda, que não há consenso nem mesmo entre os administrativistas a respeito da natureza jurídica da fundação pública, inclinando-se muitos a considerá-la uma espécie de autarquia.[108]

A melhor definição de entidades paraestatais é aquela que enfoca tais entes como pessoas jurídicas de Direito privado, instituídas por lei, “para a realização de atividades, obras ou serviços de interesse coletivo, sob normas e controle do Estado”.[109]

Inserem-se como modalidades de entidades paraestatais as empresas públicas, as sociedades de economia mista, os serviços sociais autônomos e modernamente o que se denomina “terceiro setor”.

A empresa pública é a pessoa jurídica de Direito privado, com capital totalmente estatal, destinada à consecução de serviços públicos ou atividade econômica estabelecida na própria lei que a instituiu, sujeitando-se ao regime jurídico específico das empresas privadas, inclusive no que tange às relações trabalhistas e obrigações tributárias (vide art. 173, CF).[110]

As sociedades de economia mista, por sua vez, também são pessoas jurídicas de Direito privado, criadas por lei, sob a forma de sociedade anônima, para a realização de serviços públicos ou realização de atividade econômica, com participação de capital público e particular, reservando-se ao ente estatal a maioria das ações com direito a voto e os atos de gestão.

Os serviços sociais autônomos são entes paraestatais de cooperação com o poder público, diferenciando-se das empresas públicas e sociedades de economia mista, e inserem-se no âmbito da administração descentralizada. Podem-se definir tais serviços como entes criados por lei, com natureza jurídica de Direito privado, erigidos com a finalidade de ofertar assistência ou ensino a determinadas “categorias sociais ou grupos profissionais, sem fins lucrativos, sendo mantidos por dotações orçamentárias ou por contribuições parafiscais”.[111] Citem-se, como exemplos, o Senai, o Senac, o Sesc etc.

O terceiro setor é composto de entes da sociedade civil de fins públicos e não-lucrativos. São eles considerados entidades públicas porque prestam atividades de interesse público, não sendo, contudo, estatais, já que não se inserem no âmbito da Administração Pública direta ou indireta. Recebem tal denominação as entidades de apoio (fundações, associações e cooperativas),[112] as organizações sociais normatizadas pela Lei 9.637, de 15 de maio de 1998, e as organizações da sociedade civil de interesse público, disciplinadas pela Lei 9.790, de 23 de março de 1999.[113]

Contudo, há necessidade de se restringir o alcance do texto normativo tão-somente às hipóteses em que os funcionários de tais entidades figurem como sujeito ativo dos delitos considerados funcionais, inclusive no que tange à legislação penal extravagante. A própria topologia do artigo 327 denota a intenção do legislador de restringir tal equiparação aos moldes aqui explicitados, não podendo essa disposição ser enfocada como norma geral, conforme equivocadamente desejam alguns.[114]

Discute-se doutrinariamente se a equiparação aqui enfocada deve restringir-se aos funcionários de autarquias ou estender-se àqueles vinculados a entes paraestatais.[115] Essa discussão, contudo, perdeu importância com a nova redação do artigo 327, § 1.º, que equiparou a funcionário público até mesmo quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública. Empresa, no sentido do texto, tanto pode ser firma individual como sociedade prestadora de serviço.[116] Assim, além dos agentes já enunciados, o legislador pretendeu alcançar, com a inovação normativa, também os funcionários de empresas privadas que estejam exercendo serviço próprio do Estado (vide considerações iniciais ao delito de peculato). Citem-se o exemplo do administrador de hospital privado que presta atendimento a segurado da Previdência Social, além de tantos outros casos de exercício de atividade típica da Administração Pública.

3.         Equiparação e figura qualificada

O § 2.º do artigo 327 foi introduzido pela Lei 6.799/80, que tornou qualificado qualquer um dos crimes descritos no presente capítulo, quando praticado por agente detentor de cargo em comissão ou de função de direção ou assessoramento de órgão da Administração direta, sociedade de economia mista, empresa pública ou fundação instituída pelo Poder Público.

É insustentável a tese defendida por alguns de que somente os agentes nominados são equiparados a funcionário público, visto que qualquer funcionário dos entes paraestatais aqui enfocados pode ser sujeito ativo dos crimes funcionais, conforme foi explicado no item anterior. Evidentemente, o legislador, ao majorar a pena para os delitos perpetrados por esses agentes, quis apenas explicitar quais os entes que seriam alcançados com o tipo legal, sendo oportuno observar que a razão da majorante já foi analisada no artigo 312 do Código Penal. Contudo, há, in casu, manifesto erro de técnica legislativa, pela não-inclusão da autarquia, de forma que não será possível a aplicação da qualificadora àqueles que ocupem cargos de comissão, direção ou assessoramento em entes que tenham essa natureza jurídica, pela impossibilidade de aplicação da analogia in malam partem, salvo se se entender que o legislador considerou autarquia como ente público da Administração direta, o que não teria sustentação jurídica.

Os cargos em comissão são aqueles destinados às funções de confiança, exercidas geralmente por superiores hierárquicos. A função de direção é ínsita à diretoria da empresa, órgão executivo da sociedade, e que é composta de dois ou mais diretores, encarregados da implementação das deliberações do conselho de administração. Função de assessoramento é aquela desempenhada por técnicos contratados para auxiliar a diretoria das empresas nominadas, tratando-se, normalmente, de função de confiança. 

I – E. Enriquecimento ilícito (Lei 8.429/92) 

A Constituição Federal brasileira prevê, em seu artigo 37, §4º, que “os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”. Encontra-se aqui indiretamente consagrado no texto constitucional o princípio da probidade administrativa, um subprincípio decorrente do princípio da moralidade administrativa, previsto no artigo 37, caput, da Constituição. Assim, o dever de probidade deve ser inerente à conduta do administrador público, figurando como elemento necessário à legitimidade de seus atos.

Com o intuito de regulamentar esse dispositivo constitucional, a Lei 8.429, de 2 de junho de 1992, dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de improbidade administrativa. São três as espécies de atos considerados lesivos ao dever de probidade do administrador público: a) os que importam enriquecimento ilícito (art.9º)[117]; b) os que causam prejuízo ao erário (art.10)[118]; e c) os que atentam contra os princípios da Administração Pública (art.11)[119]. As sanções estão previstas no artigo 12 da mesma lei e implicam, entre outras conseqüências, a perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio; o ressarcimento integral do dano, quando houver; a perda da função pública; a suspensão dos direitos políticos e o pagamento de multa civil[120]. A lei estabelece ainda que, na aplicação das sanções, o juiz deverá levar em conta a extensão do dano e o proveito patrimonial obtido pelo agente.

Todas  essas sanções, porém, são de caráter civil, e, não obstante a determinação constitucional de que aos atos de improbidade administrativa deverão ser aplicadas sanções políticas, administrativas e penais, a Lei 8.429/92 conta com apenas um dispositivo de caráter penal, e que não é propriamente relativo à improbidade administrativa. Trata-se da incriminação da denunciação caluniosa de ação de improbidade administrativa, ou, em outras palavras, a representação por ato de improbidade administrativa contra agente público ou terceiro beneficiário quando o autor da denúncia o sabe inocente (art.19). Insta registrar, todavia, que esse delito perdeu sua razão de ser no ordenamento jurídico pátrio desde a edição da Lei 10.028/2000, que alterou o texto do artigo 339 do Código Penal, acrescentando ao tipo do delito de denunciação caluniosa o ato de instaurar ação de improbidade administrativa contra pessoa que se sabe inocente. Ou seja, na realidade, o único dispositivo de natureza penal previsto na Lei 8.429/92 diz respeito à tutela da administração da justiça, e não da probidade administrativa dos agentes públicos.

Por ora, enriquecimento ilícito passível de sanção penal é tão-somente aquele decorrente da prática dos crimes contra a Administração Pública, descritos nos artigos 312 a 327 do Código Penal. Urge, portanto, que se dê tratamento penal adequado aos atos de improbidade administrativa que importem em enriquecimento ilícito dos agentes públicos no exercício de suas funções. É necessário que o legislador dispense aos valores materiais e morais da Administração Pública uma tutela penal consentânea com a sua natureza e relevância social. Nesse sentido, é mister que sejam aplicadas sanções eficazes, que representem uma justa reação social contra o ilícito, em vez de penas meramente simbólicas. Basta lembrar que o mínimo de pena abstratamente cominado a alguns crimes contra a Administração Pública, tais como emprego irregular de verbas públicas, corrupção passiva, prevaricação e advocacia administrativa, dá margem a uma série de benefícios processuais, em razão de serem considerados delitos de menor potencial ofensivo, embora nesses casos seja evidente a violação de princípios administrativos relevantes.

Impõe que se faça ainda uma reunião da legislação penal existente sobre improbidade administrativa, eliminando do ordenamento jurídico dispositivos difusos destinados à incriminação de matérias paralelas (v.g., crimes previstos no Decreto-lei 201/67 – Prefeitos e Vereadores e crimes da Lei 8.666/93 – Lei de Licitações e Contratos Administrativos), e reunindo no Código Penal os novos tipos adequados à tutela da probidade administrativa. Não resta dúvida de que a previsão desses novos delitos no texto do Código Penal trará maior estabilidade e permitirá maior divulgação do conteúdo da matéria regulada.

            Seção II – Delitos de corrupção passiva (art.317, CP*), corrupção ativa (art.333, CP), corrupção ativa em transação comercial internacional (art.337-B), tráfico de influência em transação comercial internacional (art.337-C) e conceito penal de funcionário público estrangeiro (art.337-D) 

II – A. Corrupção passiva

Art. 317. Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 8 (oito) anos, e multa.

§ 1.º A pena é aumentada de um terço, se, em conseqüência da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou deixa de praticar qualquer ato de ofício ou o pratica infringindo dever funcional.

§ 2.º Se o funcionário pratica, deixa de praticar ou retarda ato de ofício, com infração de dever funcional, cedendo a pedido ou influência de outrem:

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.

 

1.         Introdução

A corrupção é um mal que circunda a humanidade desde os tempos pretéritos. Do ponto de vista histórico, verifica-se já no livro do Deuterônomio a exortação de Moisés para que os juízes não se corrompessem.[121] Na Grécia antiga, a partir da fase clássica, já foram disciplinados o peculato (klopes), a corrupção (dóron) e o abuso de autoridade (ádikia), sendo que dóron tinha o significado de dádiva, denotando a corrupção ativa ou passiva de funcionário público. Tais nomes referiam-se, na realidade, às ações populares concedidas aos cidadãos, em cada um desses delitos, aos quais eram interpostas em defesa da pólis. A corrupção perpetrada pelos magistrados recebeu, posteriormente, o nome de graphè dekasmou, sendo que dekasmós tem o sentido de suborno.[122] No Direito romano, verifica-se na Tábua Nona, inciso III, da Lei das XII Tábuas (Lex Duodecim Tabularum), que “se um juiz ou um árbitro indicado pelo magistrado recebeu dinheiro para julgar a favor de uma das partes em prejuízo de outrem, que seja morto”. A corrupção era punida como crimen repetundarum, assim chamado em razão do procedimento necessário para repetir o que havia sido entregue.

Observa-se, contudo, como já foi destacado na análise do artigo 316 do Código Penal, que a corrupção passiva se confundia no Direito romano com o delito de concussão, e só ao tempo do Império, já no século II d.C., é que a diferença entre eles foi tomando forma. Antes disso, a primeira lei que regulou inteiramente a matéria foi a Lex Calpurnia. Seguiu-se a Lex Junia, que do mesmo modo que a anterior autorizava uma legis actio sacramenti para reclamar a restituição. Pouco tempo depois aparecem a Lex Cornelia, de Sila, e a Lex Julia, de César, esta última regulando com grande detalhe esses delitos. As disposições da Lex Julia se mantêm fundamentalmente até o final do Império. Ela agregou penas infamantes ao delito de corrupção. A acusação poderia ser feita inclusive após a morte do acusado[123]

No Direito canônico, considerava-se corrupto o juiz que desse razão a qualquer uma das partes mediante uma recompensa de qualquer natureza. A pena eclesiástica era para os leigos a excomunhão, e para os religiosos a suspensio ab officio. Mais tarde passou a ser punida a simonia, que era o tráfico de bens espirituais.

No entanto, perdurou a confusão entre os conceitos desses crimes no Direito intermédio, excetuando-se as lições de Farinácio e de outros praxistas, que já estabeleciam elementos diferenciadores entre os aludidos delitos, consagrados posteriormente nos Códigos franceses de 1791 e 1810.[124] Frise-se, ainda, que, na Idade Média, a corrupção dos juízes era denominada baractaria,[125] conduta severamente reprimida nos Estatutos das Cidades-Estado.  

No Brasil, a corrupção é algumas vezes situada desde o início de nossa história e relacionada com a herança cultural, vista como peso a carregar com resignação ou indignação. É vista também como um fenômeno próprio de certos modos de governar. Trata-se, portanto, de uma prática secular, punida desde as nossas origens por todas as legislações que aqui tiveram vigência.

As Ordenações Filipinas, no Livro V, reprimiram a corrupção passiva e ativa no seu Título LXXI, sob a rubrica “Dos Officiaes del-Rey, que recebem serviços, ou peitas, e das partes, que lhas dão, ou promettem”, apenando severamente o magistrado que se corrompesse, com pena que poderia ser a de morte, dependendo do valor da peita.[126]

O Código do Império tratava da aludida conduta no Título V, segunda parte, mais precisamente nos artigos 130 e 133, que dispunham, respectivamente, sobre a peita e o suborno. O primeiro referia-se à corrupção, em que o agente recebia dinheiro ou qualquer outro donativo, enquanto o suborno expressava a corrupção perpetrada por influência ou peditório. O artigo 131 tratava especificamente da peita envolvendo magistrados.[127]

O Código de 1890, por sua vez, disciplinou a corrupção ativa e passiva no Livro segundo, Título V, Secção III, artigos 214 a 219, sob o nome de peita ou suborno, inserindo, contudo, pelos seus reiterados erros técnicos, uma modalidade de concussão no artigo 214, ao lado da peita.[128]

O legislador de 1940, a exemplo do Código suíço, disciplinou em capítulos distintos a corrupção do funcionário público (corrupção passiva) e a conduta do particular que a proporciona ou dela participa, denominada corrupção ativa pelo artigo 333 do Código Penal, criando, por conseguinte, figuras criminais distintas e independentes.[129] Outros códigos, ao contrário, acolheram o sistema que considera a corrupção ativa e passiva um crime bilateral, de forma que se torna imprescindível a convergência de vontades do intraneus (funcionário público) e do extraneus (corruptor) para que se possa concretizar a consumação delitiva.

Merece encômio a opção do legislador nacional, já que ambas as condutas devem ser tratadas separadamente. A concepção bilateral da corrupção pressupõe que, em tal delito, o funcionário e o particular engendram a prática de um ato a ser executado por aquele, em razão da sua função pública, mediante a obtenção de vantagem ou a promessa de obtê-la, havendo, portanto,  necessária convergência de vontades entre eles. Contudo, a corrupção passiva se consuma também, conforme se verá, com a simples solicitação de vantagem por parte do funcionário público, ainda que não seja aceita pelo particular, já que  solicitar constitui um dos verbos reitores do tipo de injusto penal, o mesmo ocorrendo em relação à corrupção ativa, que atinge o seu summatumm opus com o oferecimento ou promessa de vantagem (vide comentários ao art. 333), independentemente da anuência do funcionário.[130]

Pode-se definir corrupção passiva, no seu tipo central, como o recebimento, solicitação ou aceitação de promessa de vantagem indevida por parte de funcionário público, diretamente ou por interposta pessoa, em razão de sua função.[131]

No Direito espanhol, a corrupção (cohecho) vem tratada com minudência nos artigos 419 a 427 do Código Penal de 1995.[132] Assim, tem-se corrupção por autoridade ou funcionário público para cometer delito (art. 419); corrupção para execução de um ato ilícito (art. 420); corrupção para abster-se de atuar no exercício do cargo (art. 421); corrupção cometida por pessoas equiparadas a autoridades ou funcionários (art. 422); corrupção cometida por particulares (art. 423.1 e 2); corrupção para realizar atos próprios do cargo (art. 425.1) e corrupção para a execução de um ato não proibido legalmente (art. 426). Também o Código Penal português versa sobre a matéria com riqueza de detalhes no artigo 372 (corrupção passiva para acto ilícito); no artigo 373 (corrupção passiva para ato lícito) e no artigo 374 (corrupção ativa).

2.         Bem jurídico protegido e sujeitos do delito

A tutela penal no tipo em exame tem por escopo proteger o interesse atinente ao normal funcionamento, transparência e prestígio da Administração Pública, com especial atenção à obediência ao dever de probidade, evitando-se, destarte, os nefastos danos causados pela venalidade no exercício da função pública. Tutelam-se, assim, “a pureza da função pública, a sua respeitabilidade e a integridade dos funcionários. Pune-se o tráfico das funções, a venalidade que tanto as rebaixa e prejudica”.[133]

Nesse sentido, determina o artigo 8.º da Convenção Interamericana contra a Corrupção que “cada Estado-parte proibirá e sancionará o ato de oferecer ou prometer a um funcionário público de outro Estado, direta ou indiretamente, através de seus nacionais, pessoas que têm residência habitual em seu território e empresas nele domiciliadas, qualquer objeto de valor pecuniário ou outros benefícios como presentes, favores, promessas ou vantagens, para que, em troca, o dito funcionário realize ou omita qualquer ato, no exercício de suas funções públicas, relacionado com uma transação de natureza econômica ou comercial. Entre aqueles Estados-partes que hajam tipificado o delito de suborno transacional, este será considerado um ato de corrupção para os propósitos da presente Convenção”[134].

Sujeito ativo do crime em análise é o funcionário detentor de função pública, tendo esta sentido mais amplo do que o de cargo público (vide comentários ao art. 327). A norma incriminadora alcança até mesmo aquele que, embora ainda não esteja exercendo a função pública, utiliza-se dela para a prática delitiva, ou que esteja dela afastado temporariamente, como no caso de licença, férias etc.[135] Podem ocorrer a co-autoria ou a participação de outro funcionário ou particular, observando-se, porém, que aquele que oferece ou promete a vantagem indevida torna-se sujeito ativo do crime definido no artigo 333 do Código Penal, constituindo uma das exceções ao disposto no artigo 29 do Código Penal, que adota a teoria monística sobre concurso de pessoas. É oportuno agregar que a corrupção de testemunha, perito, tradutor ou intérprete em processo judicial, policial ou administrativo ou mesmo no juízo arbitral encontra tipicidade no tipo penal definido no artigo 342, § 2.º, do Código Penal, enquanto a corrupção do eleitor encontra-se contida no artigo 299 do Código Eleitoral (Lei 4.737/65).

É imperioso destacar aqui que, se por um lado o extraneus ao ofício, ou corruptor do funcionário público, não é necessariamente um particular, podendo ser também  outro funcionário público, desde que estranho à função pública objeto do pactum sceleris próprio do delito; por outro lado, também a qualidade de intraneus pode compreender até mesmo o particular, quando, por exemplo, este último procede à prisão em flagrante em delito de alguém[136].

Sujeito passivo é o Estado, representado pela União, Estados-membros, Distrito Federal, municípios e demais pessoas mencionadas no artigo 327, § 1.º, do Código Penal.

3.         Tipicidade objetiva e subjetiva

A conduta típica consiste em solicitar, receber ou aceitar promessa de vantagem indevida, para si ou para outrem, em razão da função pública exercida pelo agente ou que ele irá exercer.[137]

Trata-se de tipo básico, misto alternativo, anormal e incongruente.

O núcleo do tipo está consubstanciado pelos verbos reitores solicitar, receber e aceitar. Solicitar implica a ação de pedir, de rogar, de induzir, podendo se dar de forma explícita ou mediante comportamento astucioso do agente que deixa transparecer ao particular a sua proposta venal.[138] Observe-se, portanto, que, embora a corrupção seja denominada “passiva” pelo legislador, ela abrange também uma conduta ativa por parte do funcionário corrompido – qual seja a de solicitar a vantagem indevida. Receber denota a idéia de obter a vantagem oferecida, havendo aqui uma conduta passiva do funcionário, em contrapartida à ação de oferecer praticada pelo corruptor (art. 333). Aceitar, no sentido do texto, expressa a anuência do funcionário à proposta corruptora de um benefício futuro ofertado pelo extraneus.

Vantagem indevida é todo benefício ou proveito contrário ao Direito, direcionado, no caso, ao agente ou a terceira pessoa, constituindo, portanto, elemento normativo do tipo de injusto de valoração jurídica. Embora, para alguns, a vantagem deva ser de natureza patrimonial,[139] acolhe-se aqui o entendimento de que sua acepção deve ser entendida em sentido amplo, já que o funcionário pode se corromper traficando com a função, sem que a retribuição almejada tenha necessariamente valor econômico. O importante é que conserve o caráter de retribuição para o funcionário público, servindo-lhe para aportar um benefício pessoal[140]. Assim, o agente pode agir por amizade, ou para obter os favores sexuais de uma mulher, ou visando alcançar um posto funcional de destaque, ou mesmo para satisfazer um desejo de vingança.[141]

A vantagem auferida ou aceita pelo funcionário público tem que ser indevida, ou seja, contrária ao Direito, podendo consubstanciar-se em dinheiro, bem imóvel, jóias, distinções honoríficas ou qualquer outro objeto ou coisa apreciável.[142] Insta registrar que, na hipótese de o funcionário visar com a prática do ato benefícios para o erário,  não se configura o delito[143].

Agregue-se, por oportuno, que a retribuição pretendida pelo funcionário com o ato realizado ou a realizar-se deve ser enfocada no aspecto objetivo e no subjetivo, já que um objeto recebido pelo agente, de um particular, nem sempre se insere no âmbito de um pacto de corrupção. Além, portanto, da relação objetiva que deve aflorar entre a vantagem que gravita na corrupção e o ato praticado pelo agente, impõe-se a necessária análise de uma relação subjetiva, já que há interesse pessoal do funcionário em alcançar uma retribuição e a vontade de retribuir por parte do extraneus, de forma que, ausente tal interesse pessoal, não se configura o delito em epígrafe.[144] Assim, as homenagens feitas ao funcionário por honorabilidade, manifestadas por estima ou admiração, bem como pequenos presentes recebidos por mera cortesia, como comestíveis, bebidas etc., ofertados desinteressadamente, v.g., nas festividades natalinas ou do Ano Novo, não encontram tipicidade na norma em exame, já que não há vontade de corromper, nem mesmo a consciência do funcionário em praticar nenhum ato funcional movido pela venalidade.[145] O dado essencial do delito de corrupção não reside exatamente na solicitação ou recepção de uma vantagem indevida pelo funcionário público, mas no desvio das funções públicas em direção a fins contrários aos interesses gerais. Portanto, é necessário um mínimo de idoneidade por parte da vantagem oferecida para que se verifiquem a lesão ou o perigo de lesão ao bem jurídico tutelado[146].

O ato funcional, omissivo ou comissivo, visado pela corrupção, tanto pode ser lícito como ilícito. Assim, quando o funcionário pratica um ato lícito, visando à obtenção de vantagem indevida, dá-se a corrupção imprópria, enquanto a prática de um ato funcional ilícito, que expressa a violação dos deveres da função, caracteriza a corrupção própria.[147] Tal distinção não é relevante, contudo, para a configuração delitiva, já que em ambas as hipóteses o agente enodoa a Administração, desprestigiando-a com o tráfico da função.[148]

Registre-se ainda que o ato de ofício objeto do delito de corrupção passiva não precisa restar desde o início determinado, ou seja, não é necessário que no momento em que o funcionário solicita ou recebe a vantagem o ato próprio de suas funções esteja individualizado em todas as suas características. Basta apenas que se possa deduzir com clareza qual a classe de atos em troca dos quais se solicita ou se recebe a vantagem indevida – isto é, a natureza do ato objeto da corrupção[149].

A corrupção é ainda classificada em antecedente e subseqüente, dependendo do momento em que se concretiza a vantagem. Assim, a antecedente manifesta-se quando o funcionário ainda não praticou o ato visado com o pacto delituoso, enquanto a subseqüente se clarifica quando o agente recebe a vantagem ilícita sem prévio ajuste com o extraneus, e após a prática do referido ato.[150] Ambas as condutas se subsumem ao tipo penal descrito no artigo 317, pois se trata aqui de atender a uma exigência político-criminal segundo a qual devem ser evitadas lacunas de punibilidade diante de condutas de idêntico significado social e jurídico. Todo ato de corrupção de titular de uma função pública será punível, independentemente do momento de sua execução. Entretanto, é importante ter em mente que, se antes da atuação não houve promessa nem oferecimento aceitos, nem conseqüente entrega de dádivas ou presentes, após a realização do ato pelo funcionário público, não se verifica o tipo do delito de corrupção, a não ser que a solicitação de contraprestação econômica se projete no futuro sobre o comportamento funcional, determinando a sua realização. Não se pode desvalorar predisposições que ponham em perigo o correto exercício da função pública quando se referem apenas a atuações funcionais históricas, anteriores à admissão de contraprestações econômicas alheias e carentes de significação no desempenho atual e futuro da função pública. Assim, a aceitação de vantagem a posteriori do exercício de uma atividade funcional, por sua extemporaneidade, não permite apreciar ainda a incidência típica do tipo do delito de corrupção, a não ser que a recompensa pelos atos anteriores implique ex ante um preço para o suborno de ações futuras[151].

Exige-se, ainda, como pressuposto do delito em exame, que o ato em torno do qual é praticada a conduta incriminada seja da competência ou atribuição[152] inerente à função exercida pelo funcionário público, já que a tipicidade cinge-se justamente ao tráfico da função. Caso o agente não seja competente para a prática do ato, sua conduta poderá amoldar-se ao disposto no artigo 332, ou mesmo figurar como co-autor do crime de corrupção ativa (art. 333), dependendo das elementares presentes.[153]

Assinale-se, também, que, na hipótese de o funcionário público ser servidor fazendário ou da Previdência Social, encarregado do lançamento e/ou da cobrança de tributos ou contribuição social, a conduta delitiva amolda-se ao disposto no artigo 3.º, inciso II, da Lei 8.137/90, em face da aplicação do princípio da especialidade, já que a aludida norma dispõe sobre a corrupção passiva praticada por tais servidores. Aliás, um dos verbos reitores do tipo de injusto ali inserido (exigir) refere-se também ao delito de concussão.[154] Frise-se que no artigo 316 já foram assinaladas as diferenças existentes entre os delitos de concussão e o de corrupção passiva.

O elemento subjetivo da corrupção passiva está representado pelo dolo, consubstanciado na consciência e vontade de solicitar, receber ou aceitar a promessa de vantagem indevida, em razão da função pública, ciente da sua ilicitude. Há ainda o elemento subjetivo especial do injusto manifestado pelo especial fim de agir, contido na expressão para si ou para outrem.[155]

Por se tratar de delito formal, a corrupção passiva se consuma com a solicitação ou o recebimento da vantagem indevida, bem como com a aceitação da promessa da aludida vantagem, não sendo imprescindível que o agente venha a praticar o ato funcional. Na hipótese de solicitação, não se exige que o extraneus adira à vontade do agente para a consumação delitiva, visto que ou se realiza a solicitação, consumando-se o delito, ou o agente não a formula, deixando de praticar o ato típico, o que afasta a figura da tentativa.[156] No caso de recebimento e aceitação de promessa, em que a iniciativa parte do corruptor, a consumação se perfaz no ato do recebimento e no momento em que o agente manifesta o desejo de aceitar a promessa, que normalmente se concretiza na própria realização do ato objetivado pelo corruptor ou na sua omissão, não exigindo o tipo que o extraneus tenha capacidade penal, podendo tal iniciativa partir, v.g., de um menor de 18 anos. Tanto no recebimento como na aceitação da promessa perfaz-se também o correspondente delito de corrupção ativa (art. 333). Em tal caso, não há que falar em tentativa, porque ou o delito se consuma com o recebimento ou com a aceitação da vantagem indevida, ou o funcionário a repele, caracterizando-se apenas o crime de corrupção ativa. Ensina-se que na corrupção subseqüente a tentativa é juridicamente aceitável. No entanto, também nessa hipótese, é inconcebível falar em realização incompleta do tipo objetivo, por circunstâncias alheias à vontade do agente, pois, mesmo que o extraneus seja surpreendido ofertando a vantagem indevida, o delito já estará consumado, em face do atentado ao bem jurídico tutelado.[157]

Assim, pode-se classificar o delito em análise como sendo próprio, funcional, formal e de conteúdo variado.

4.         Corrupção qualificada

O legislador inseriu no § 1.º do artigo 317 a figura da corrupção qualificada pelo exaurimento da conduta delitiva, em que o agente, em face da motivação propiciada pela vantagem indevida ou promessa de vir a recebê-la, retarda ou deixa de praticar qualquer ato de ofício ou o pratica infringindo dever funcional, caracterizando-se a corrupção própria, como já foi explicitado no item 3.

Trata-se de tipo derivado, misto alternativo, anormal e incongruente.

O retardamento do ato de ofício enfocado no texto normativo denota o escoamento do prazo para a consecução do ato ou a fluição de lapso temporal relevante para a sua prática. Na forma omissiva, o agente deixa de praticar o ato sobre o qual gravita o pacto criminoso, enquanto na última modalidade (comissiva) o funcionário pratica o ato não permitido, atentando contra o dever da função.

O elemento subjetivo está representado, portanto, pelo dolo, manifestado pela consciência e vontade de retardar, deixar de praticar qualquer ato de ofício ou praticá-lo com conhecimento da violação do dever funcional. A aludida conduta implica o acréscimo da sanção em um terço. Trata-se de majorante que influencia na medida da culpabilidade, denotando maior reprovabilidade pessoal da conduta típica e ilícita.

A consumação se perfaz com o retardamento ou omissão do ato ou com a sua prática, com violação do dever funcional, após o agente ter solicitado, recebido ou aceito a promessa da vantagem indevida. A tentativa é inadmissível.

Admite-se a hipótese de concurso material ou formal entre a corrupção passiva qualificada e os delitos definidos nos artigos 305, 308, 318 e 320 do Código Penal.[158]

5.         Corrupção privilegiada

O legislador inseriu no § 2.º do artigo em exame uma figura privilegiada da corrupção passiva, em que o agente pratica a conduta delitiva descrita no § 1.º não impelido pelo propósito de obter uma vantagem indevida e, sim, cedendo a pedido ou a influência de outrem.

Trata-se de tipo derivado, misto alternativo, anormal e incongruente.

O Código Criminal de 1830 tratava da matéria no artigo 133 como uma das modalidades de suborno. Da mesma maneira, o Código de 1890 inseriu tal conduta em seu artigo 215. 

A primeira expressão – cedendo a pedido – denota que o agente anuiu à solicitação apresentada pelo interessado ou por outrem. Quanto à segunda hipótese legal, observa-se que o funcionário público se deixa corromper para ser agradável ou por mera bajulação, havendo uma deferência sua para com terceiro.

A consumação se perfaz com o retardamento ou omissão do ato ou com a sua prática, com violação do dever funcional. Não se admite a tentativa.

A tipicidade subjetiva está representada pelo dolo, manifestado pela consciência e vontade de praticar, omitir ou retardar a prática do ato funcional, acrescido do elemento subjetivo especial do tipo, consubstanciado no especial fim de agir clarificado na intenção de agradar  a outrem.

Trata-se de circunstância que atua sobre a medida da culpabilidade.

6.         Corrupção passiva e outros delitos

A respeito dos elementos diferenciadores do delito em exame e do crime de concussão, vide comentário ao artigo 316.

No tocante à diferença entre corrupção passiva e prevaricação (art. 319), é oportuno frisar que na última figura o agente não age impelido por vantagem indevida ou promessa desta, mas unicamente para satisfazer interesse ou sentimento pessoal.[159]

Diferencia-se também o delito em análise do crime de estelionato, já que neste o agente obtém o proveito ilícito não em razão da função, mas utilizando-se de meio fraudulento, fazendo inculcar na vítima tal qualidade para atingir a meta optata.[160]

7.         Figura qualificada especial

São aqui pertinentes as mesmas observações já feitas por ocasião da análise do delito de peculato qualificado.

8.         Pena e ação penal

A pena prevista para o caput é de um a oito anos de reclusão, além da pena pecuniária. Na figura delitiva do § 1.º, há a majoração de um terço da sanção, enquanto para a hipótese do § 2.º a pena é de três meses a um ano de detenção, ou multa. A ação penal é pública incondicionada.[161]

II – B. Corrupção ativa

Art. 333. Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 8 (oito) anos, e multa.

Parágrafo único. A pena é aumentada de um terço, se, em razão da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou omite ato de ofício, ou o pratica infringindo dever funcional.

1.         Introdução

Consigne-se, inicialmente, que a evolução jurídico-penal do crime de corrupção já foi analisada no delito definido no artigo 317 (corrupção passiva), tendo inteira aplicação na análise do tipo de injusto aqui enfocado.

Em complemento àquele estudo, observa-se que no Direito romano garantia-se a impunidade do corruptor de magistrado que confessasse seu ato, visando-se, assim, robustecer a prova contra o aludido funcionário. No entanto, como posteriormente se proibiu ao corruptor a interposição da ação de repetição de indébito, ainda que colaborasse com sua confissão, esse favor legal não surtiu o efeito almejado.

Na Idade Média, o corruptor de magistrado passou a ser responsabilizado penalmente pela mesma sanção imposta ao funcionário em epígrafe, costume que foi acolhido pelos povos durante o período das codificações.

Assim, o Código Penal francês de 1810 cominava a mesma pena para o corruptor e o funcionário corrompido, pelo que se depreende do disposto no seu artigo 179, § 1.º. No mesmo sentido, dispunham os Códigos toscano de 1853 e  sardo-italiano de 1859. O Código Zanardelli, por sua vez, além de definir o delito do corruptor, estabelecia reprimendas graduadas, caso o funcionário corrompido houvesse ou não praticado o ato. O Código Rocco, a seu turno, disciplinou a matéria nos artigos 321 e 322.

As Ordenações Filipinas, a seu turno, trataram do crime de corrupção no Livro V, Título LXXI, sob a rubrica “Dos Officiaes del Rey, que recebem serviços, ou peitas, e das partes, que lhas dão, ou promettem”, texto normativo que já foi transcrito no comentário dedicado ao artigo 317 do Código Penal.

O Código do Império (1830) inseriu a corrupção ativa na Segunda Parte, Título V (Dos Crimes contra a boa ordem e administração pública), Capítulo I (Prevaricações, abusos e omissões dos empregados públicos), Secção II (Peita), artigos 132 e 134.[162]

O estatuto republicano de 1890, a seu turno, dispôs sobre a corrupção ativa no Livro II, Título V (Dos crimes contra a boa ordem e administração pública), Capítulo Único (Das malversações, abusos e omissões dos funccionarios públicos), Secção III (Peita ou suborno), artigo 217.[163]

Divergindo do Código Penal italiano, no qual se inspirou para a feitura da maioria das normas penais, o legislador de 1940 adotou a mesma sistemática do Código suíço, tratando da corrupção passiva e da ativa em normas independentes e até mesmo em capítulos distintos; logo, o crime de corrupção, nas duas modalidades, não pode ser enfocado como delito bilateral, já que o aperfeiçoamento de um não depende da concreção do outro, embora haja identidade quanto ao bem jurídico penalmente tutelado (vide considerações gerais do art. 317).

2.         Bem jurídico protegido e sujeitos do delito

Tal qual no artigo 317, a tutela penal, in casu, recai sobre o interesse de se preservar o normal funcionamento e o prestígio da Administração Pública, visando assegurar “a pureza da função pública, a sua respeitabilidade e a integridade dos funcionários”.[164] Torna-se imperiosa a repressão dos corruptores, para evitar que agentes públicos de frágil formação moral sejam estimulados a atentar contra o princípio da probidade administrativa.[165]

Assim, enquanto para o funcionário a prática da corrupção implica o desrespeito aos princípios fundamentais que regem a Administração Pública, para o particular, na falta dessa obrigação, vigente para o funcionário, de não se deixar determinar por motivos alheios ao dever que lhe impõem as funções que lhe são conferidas, o bem jurídico lesado é o respeito que deve ao normal funcionamento dos órgãos do Estado[166].

Sujeito ativo do delito é qualquer pessoa, podendo ser tanto o particular como também outro funcionário público, que age nesse caso como se fosse um particular. Não há evidentemente concurso entre corruptor e corrompido, já que ambos respondem por crimes distintos, ainda que haja convergência de vontades, como nas condutas de oferecer e de receber.[167] Como já foi explicitado, a bilateralidade não é imprescindível à configuração da corrupção, já que tanto a forma ativa como a passiva podem apresentar-se unilateralmente, nada impedindo, contudo, que ambas ocorram simultaneamente.[168]

Sujeito passivo é o Estado, representado pela União, Estados-membros, Distrito Federal e municípios. Não incide aqui o alcance da norma inserida no artigo 327, § 1.º, do Código Penal, que só tem aplicação quando o sujeito ativo se reveste da qualidade de funcionário público.

3.         Tipicidade objetiva e subjetiva

Trata-se de tipo autônomo, misto alternativo, anormal e incongruente.

A conduta típica vem expressa pelos verbos nucleares oferecer e prometer. O primeiro denota a ação de apresentar, de colocar à disposição, de exibir, enquanto o segundo expressa o ato de obrigar-se a dar, de empenhar o compromisso de que dará ou fará algo em favor de alguém.[169] De se registrar aqui que o legislador deveria ter previsto também, entre as condutas que configuram a corrupção ativa, a simples aceitação do pedido do funcionário público pelo autor[170].

O agente pode utilizar-se de todos os meios para corromper o funcionário público, como palavras, atos, gestos insinuantes, escritos etc.

Objeto material da conduta é a vantagem indevida, que constitui todo benefício ou proveito contrário ao Direito, figurando, portanto, como elemento normativo do tipo de injusto de valoração jurídica, assim como o termo funcionário público. A vantagem pode ser de qualquer natureza, seja material, seja moral (vide art. 317). O agente pode utilizar-se de interposta pessoa para corromper o funcionário, e, se tal pessoa tem conhecimento do propósito do agente, será partícipe do delito.

Importa agregar que, ao contrário do que ocorre na corrupção passiva, aqui não há tipificação na corrupção subseqüente, já que o tipo exige que a conduta do corruptor seja perpetrada antes da prática do ato pelo funcionário público.

A ação delituosa visa satisfazer interesse do agente ou de outrem. O aludido interesse refere-se a ato de ofício, objetivando a conduta que o funcionário o pratique, omita-se na sua realização ou o retarde (vide tipicidade objetiva do art. 317), de forma que se exige para a configuração delitiva que a vantagem indevida ofertada ou prometida esteja relacionada a um ato próprio do ofício do funcionário público. Assim, se a meta optata visa à prática de ato não compreendido na esfera de atribuição do funcionário, não há que se falar em corrupção ativa, podendo a conduta amoldar-se a outro tipo legal (vide comentário ao art. 317).[171] Leciona-se também que não é antijurídica a ação do agente ao oferecer ou prometer vantagem a funcionário para livrar-se de ato ilegal por este praticado.[172]

Frise-se, por oportuno, que pequenos mimos oferecidos a funcionário público sem o ânimo de corrompê-lo não se amoldam ao tipo de injusto em análise. Como já exposto no artigo 317, as homenagens feitas a funcionário por honorabilidade, manifestadas por estima ou admiração, bem como pequenos presentes recebidos por mera cortesia, como comestíveis, bebidas etc. ofertados desinteressadamente, v.g., nas festividades natalinas ou do Ano Novo, não encontram tipicidade na norma em exame, já que não há vontade de corromper, nem mesmo a consciência do funcionário em praticar nenhum ato funcional, movido pela venalidade.

O elemento subjetivo está representado pelo dolo, consubstanciado na consciência e vontade de oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, acrescido do elemento subjetivo do injusto, manifestado pelo especial fim de agir, que, in casu, é o escopo de levar o funcionário a praticar ato de ofício, omiti-lo ou retardá-lo.

Por se tratar de delito formal ou de mera conduta, a consumação do crime de corrupção ativa se perfaz com o efetivo conhecimento, pelo funcionário, do oferecimento ou promessa de vantagem indevida, ainda que ele recuse a proposta delituosa. Evidentemente, o legislador se contentou com a consumação formal, bastando, portanto, a mera possibilidade de dano.[173]

A tentativa é juridicamente admissível tão-somente na hipótese de a conduta ser praticada por escrito, sendo interceptada antes de chegar ao conhecimento do funcionário público.

O delito pode ser classificado, portanto, em comum, formal, de forma livre e comissivo.

4.         Corrupção qualificada

Tal qual no delito de corrupção passiva, qualifica-se o delito se, em face da vantagem ofertada ou prometida, o funcionário corrompido retarda ato de ofício, ou seja, pratica-o fora do tempo devido, não o executa (omissão), ou o concretiza infringindo dever funcional. 

Verifica-se, portanto, que, se o funcionário público, em decorrência da ação do corruptor, pratica ato de ofício, a pena permanece a do caput. No entanto, se “o ato é devido, mas tarda ou não é praticado, ou o ato é indevido”,[174] a pena aumenta-se de um terço.

Trata-se de majorante que influencia na medida da culpabilidade, já que o agente, ao atingir a meta optata, enodoa a Administração Pública, desprestigiando-a perante os destinatários da sua atuação, justificando, por conseguinte, a maior reprovabilidade da conduta delitiva.

            5.         Corrupção ativa e outros delitos

Se a vantagem é imposta ou exigida pelo funcionário público, a conduta amolda-se ao disposto no artigo 316 do Código Penal (concussão).

A vantagem ofertada ou prometida a testemunha, perito, tradutor ou intérprete caracteriza o delito definido no artigo 343 do Código Penal.

Quando o agente dá, oferece ou promete “dinheiro, dádiva ou qualquer outra vantagem, para obter (...) voto e para conseguir ou promover abstenção, ainda que a oferta não seja aceita,” sua conduta amolda-se ao tipo de injusto penal definido no artigo 299 do Código Eleitoral (Lei 4.737/65).

Se a conduta corruptora gravita em torno de ato funcional de natureza militar, caracteriza-se o crime definido no artigo 309 do Código Penal Militar.

6.         Pena e ação penal

A pena prevista para a corrupção simples prevista no caput é de um a oito anos de reclusão, além da pena pecuniária.[175] Critica-se a equiparação de penas existente entre a corrupção ativa e a corrupção passiva, sob a alegação de que o desvalor da conduta do particular é menos grave, por não implicar a violação de deveres funcionais próprios dos agentes públicos[176].  

Admite-se a suspensão condicional do processo, em face de a pena mínima abstratamente cominada ser igual a um ano.

A ação penal é publica incondicionada.[177] 

II – C. Corrupção ativa em transação comercial internacional

Art.337-B. Prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a funcionário público estrangeiro, ou a terceira pessoa, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício relacionado a transação comercial internacional:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 8 (oito) anos.

Parágrafo único. A pena é aumentada de 1/3 (um terço) se, em razão da vantagem ou promessa, o funcionário público estrangeiro retarda ou omite ato de ofício, ou o pratica infringindo dever funcional. 

1.                  Introdução

Os delitos de corrupção ativa e de tráfico de influência em transação comercial internacional foram inseridos no Título XI do Código Penal, dedicado aos crimes contra a administração pública, pela Lei 10.467, de 11 de junho de 2002, promulgada com o objetivo de dar efetividade ao Decreto 3.678, de 2000, que recepciona a Convenção sobre o Combate à Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais, concluída em Paris, em 1997.

Não constam, portanto, registros históricos desses delitos na legislação brasileira pretérita. No que diz respeito especificamente ao delito de tráfico de influência em transação comercial internacional, é mister observar que nem mesmo a Convenção Interamericana contra a Corrupção, de 1996, prevê semelhante conduta, sugerindo apenas a incriminação do suborno transnacional, já tipificado no artigo 337-B sob a rubrica “corrupção ativa em transação comercial internacional”. 

2.                  Bem jurídico protegido e sujeitos do delito

Embora tenha o legislador, inadvertidamente, inserido os delitos de corrupção ativa em transação comercial internacional e de tráfico de influência em transação comercial internacional no Título XI do Código Penal, dedicados aos delitos contra a administração pública, sob a denominação comum de “crimes praticados por particular contra a administração pública estrangeira”, calha observar que não é esse o bem jurídico tutelado com a criação dessas novas figuras típicas.

A prática da corrupção ativa de funcionários públicos estrangeiros, bem como a do tráfico de influência em transação comercial internacional, ocasionam o desvio de bens e serviços em direção a interesses menos convenientes para a comunidade administrada por esses agentes. Se o funcionário em questão figura como responsável pelos mecanismos de controle dos gastos públicos, por exemplo, é possível que empresas privadas menos competitivas consigam obter, de forma desleal, vantagens em relação a empresas em melhores condições no mercado, através da elisão do pagamento de tributos. Se esses desvios são comuns na vida econômica interna de um país, não há por que se supor que, no cenário globalizado das transações mercantis internacionais, não possa ocorrer o mesmo.

São inúmeros os fatores que levam ao incremento da corrupção no cenário internacional. Entre os mais comuns, pode-se citar, primeiramente, a globalização, que consiste no processo histórico-econômico pelo qual as políticas nacionais vão perdendo importância em relação às políticas externas, ditadas fora das fronteiras dos Estados. Demais disso, os países vão sendo forçados a viver em constante risco, o que lhes impõe a submissão a constantes ameaças e inseguranças. O  fator econômico é outro ponto marcante desse delito, pois não se pode negar que todas as manifestações da corrupção se assentam em bases econômicas, direta ou indiretamente. Mas isso não significa que, nos países economicamente mais desenvolvidos e, portanto, que contam com  maior número de transações comerciais internacionais, sejam registrados mais casos de corrupção do que naqueles menos desenvolvidos. Pelo contrário: verifica-se que, muitas vezes, a prática constante do comércio internacional faz com que o Estado se preocupe cada vez mais com a transparência de sua economia, de forma a captar a confiança do mercado externo. Por outro lado, nos países em que a corrupção assume caráter endêmico, o favoritismo político e econômico se converte em moeda de troca para qualquer transação econômica que envolva ou dependa de órgãos e instituições públicas. Por essa razão, as instituições financeiras internacionais costumam condicionar sua cooperação com os países em desenvolvimento à implementação de reformas que contribuam para o combate à corrupção[178].

A corrupção transnacional - ou “suborno internacional”, como prefere a Convenção Interamericana contra a Corrupção – consiste no “oferecimento ou entrega de dinheiro, bens de valor pecuniário ou outros benefício como favores, promessas ou vantagens a um funcionário público de um Estado estrangeiro, a fim de conseguir que esse funcionário realize ou omita qualquer ato destinado a influir sobre uma transação de natureza econômica ou comercial vinculada ao exercício de seu cargo”[179]. Dessa forma, as empresas que atuam fora de seus países procuram influir sobre os funcionários aos quais competem as decisões acerca das aquisições ou contratos do governo, com vistas a obter favorecimentos em transações comerciais internacionais. É possível também que a prática da corrupção internacional vise a decisões governamentais favoráveis em transações consolidadas exclusivamente entre empresas privadas (v.g., o estabelecimento de normas a respeito das características de determinado produto pode deixar fora do mercado uma empresa que não tenha condições de atendê-las).

Ante o exposto, resta evidente que  a boa-fé, a regularidade e a transparência nas relações comerciais internacionais  é que se vêem abaladas com a prática dessas condutas, e não a administração pública nacional ou estrangeira.

A boa-fé nas transações mercantis internacionais é evidenciada pelo compromisso de probidade que deve existir entre as empresas, de forma que a concorrência entre elas se dê unicamente em relação à qualidade e ao preço de seus produtos, e não através do uso da fraude, e também através da lealdade entre os países, de forma a evitar o engrandecimento da economia de um deles à custa da corrupção do setor público de outros.

Assim, o imperativo que demanda a transparência no comércio internacional não é apenas de cunho ético, mas também econômico, porque significa incremento da concorrência e da eficácia nas relações do mercado internacional. É precisamente na obscuridade e na falta de confiança entre as partes nas transações comerciais que a corrupção encontra o cenário ideal para se desenvolver. A transparência, ao contrário, garante aos cidadãos e às empresas das diferentes nações a possibilidade de atestar que o comércio internacional se realiza de forma honesta e segura.

A corrupção transnacional resulta mais grave que a corrupção praticada no âmbito interno de cada país por várias razões: seja porque geralmente diz respeito a contratos de montante bastante elevado, ou porque se tem, em relação a esses contratos, um poder de controle menor, ou ainda porque, ao se difundir pelo mundo, esse delito fere gravemente o sistema de livre mercado, reduzindo consideravelmente suas possibilidades de recuperação. A corrupção transnacional induz os governos a adquirir bens e serviços a preços maiores que os reais e de qualidade inferior à normal. E isso gera  duplo prejuízo: por um lado, distorce a concorrência, porque a escolha dos bens e serviços não se faz em atenção às condições reais de oferta, mas tendo em vista a quantia que é entregue ao funcionário encarregado de decidir pela compra; por outro, o Estado acaba pagando preços mais altos por produtos de qualidade inferior e não sobra dinheiro para investir em áreas relevantes como educação, saúde e habitação da população de baixa renda, que assim se vê prejudicada pela falta de ação do governo. A lealdade nas transações comerciais internacionais, a seu turno, conduz a um sistema de distribuição bastante justo, segundo o qual os empresários recebem dos consumidores o preço que corresponde ao seu talento e ao seu esforço. Demais disso, as aquisições do governo são decididas com respeito a uma disputa leal entre os provedores, permitindo o investimento de maior quantidade de recursos públicos no setor social.

Destarte, embora a corrupção transnacional e a corrupção praticada na esfera da administração pública estatal tenham alguns pontos de contato, elas só se identificam sob a ótica daquele que observa o ato do ponto de vista do funcionário corrompido.

As semelhanças terminam por aí, porque o delito de corrupção ou suborno transnacional não é tipificado pelo Estado ao qual pertence o funcionário corrompido, mas pelo país de origem da empresa ou do particular que pratica o ato de corrupção.

Nessa perspectiva, embora no delito de corrupção não pairem dúvidas quanto ao fato de o bem jurídico ser a administração pública, visto que o Estado que tipifica esse crime é aquele ao qual pertence o agente corrompido, na corrupção transnacional o bem jurídico é diverso, pois um país não pode pretender atribuir-se a tutela sobre a integridade da administração pública de outro – no caso, a “administração pública estrangeira”, como dispõe o Código Penal brasileiro.

Demais disso, de acordo com a tipificação sugerida pela Convenção Interamericana contra a Corrupção, o suborno transnacional se limita aos casos de obtenção ou retenção de negócio no exterior. Trata-se, portanto, de evitar que um cidadão ou uma empresa obtenham vantagens ilícitas no comércio transnacional através do suborno de funcionários públicos estrangeiros. Essa conduta atenta claramente contra as regras da concorrência econômica internacional, que devem estar sempre pautadas pela boa-fé. São, destarte, a boa-fé, a regularidade e a transparência das transações comerciais internacionais o bem jurídico tutelado no delito de corrupção ativa de funcionário público estrangeiro[180].

Ao contrário dos demais bens jurídicos protegidos pela legislação penal, a boa-fé, a regularidade e a transparência nas transações comerciais internacionais não são bens exclusivos de determinado país, mas pertencem a toda  a comunidade internacional. Isso porque todos os Estados têm interesse na preservação da liberdade no sistema de intercâmbio e no direito de que suas administrações, seus cidadãos e suas empresas não sejam obrigados a arcar com despesas injustas. Além de um novo bem jurídico a proteger, descortina-se aqui também uma nova forma de proteção: cada Estado exerce jurisdição sobre seus nacionais no intuito de tutelar um bem jurídico que pertence à comunidade internacional.

Sujeito ativo do delito em análise pode ser qualquer pessoa física, particular ou funcionário público, que nesse caso age como se fosse um particular, atendendo aos próprios interesses (crime comum). Sujeito passivo é a pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que se vê lesada pela transação mercantil concluída com desrespeito à transparência e à boa-fé que devem imperar nas relações comerciais, além da comunidade internacional, que, ao contrário do que se possa imaginar, não se interessa apenas pela tutela dos direitos humanos, mas também intervém de forma ativa e crescente na construção do progresso jurídico e econômico das nações. Colabora para o progresso jurídico ao promover, através de tratados, medidas de cooperação internacional em matérias como direitos humanos, terrorismo, narcotráfico, meio ambiente e, mais recentemente, corrupção. E contribui para o progresso econômico mediante o comércio transnacional, entre cujos efeitos benéficos figuram a geração de fontes de trabalho por meio de investimentos diretos, a promoção e difusão de avanços tecnológicos e a diminuição dos preços dos bens de uso e de consumo através do incentivo à concorrência[181]

3.                  Tipicidade objetiva e subjetiva

A conduta típica consiste em prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a funcionário público estrangeiro, ou a terceira pessoa, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício relacionado à transação comercial internacional. Trata-se de tipo autônomo, misto alternativo, anormal e incongruente.

Prometer, oferecer e dar são verbos núcleos do tipo. Prometer expressa o ato de obrigar-se a dar, de empenhar o compromisso de que dará ou fará algo em favor de alguém. Oferecer denota a ação de apresentar, de colocar à disposição, de exibir[182]. Ambas as condutas se distinguem do ato de dar, que tem o sentido de efetivamente transferir a propriedade.

Cumpre registrar que o agente pode utilizar qualquer meio para corromper o funcionário público estrangeiro, como palavras, atos, gestos insinuantes, escritos, etc. Além disso, assinala o tipo penal que a conduta pode ser praticada direta ou indiretamente. A forma indireta de prática do delito pode ter mais de um sentido. Em primeiro lugar, abrange a ação, como intermediário, de uma pessoa que conhece o destino do dinheiro ou outro valor outorgado ao funcionário. Portanto, se essa pessoa tem conhecimento do propósito do agente, será partícipe do delito, do contrário a corrupção será reputada direta, pois a vontade do intermediário deixa de ser importante, constituindo mera extensão da ação do sujeito principal. Ainda, a corrupção indireta pode ser perpetrada mediante insinuações e atitudes não expressas que procuram revelar a intenção do autor de oferecer o valor.

Objeto material do delito é a vantagem indevida, elemento normativo do tipo que significa todo benefício ou proveito contrário ao Direito, de natureza material ou moral. Embora para alguns a vantagem deva ser de natureza exclusivamente patrimonial[183], acolhe-se aqui o entendimento de que sua acepção deve ser entendida em sentido amplo, já que o funcionário pode se corromper sem que a retribuição almejada tenha necessariamente valor econômico[184]. Assim, o funcionário pode agir por amizade, ou visando alcançar um posto funcional de destaque ou mesmo para satisfazer um desejo de vingança[185]. Demais disso, a vantagem deve ser indevida, ou seja, ilícita, contrária ao Direito, podendo consubstanciar-se em dinheiro, bem imóvel, distinções honoríficas ou qualquer outro objeto ou coisa apreciável[186].

A vantagem indevida deve ser prometida, oferecida ou dada a funcionário público estrangeiro ou a terceira pessoa. O conceito de funcionário público estrangeiro, elemento normativo do tipo de valoração jurídica, é fornecido pelo próprio Código Penal, que assim considera, para efeitos penais, quem, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública em entidades estatais ou em representações diplomáticas de país estrangeiro (art.337-D). As noções de cargo, emprego e função pública já foram elucidadas quando do estudo do conceito de funcionário público insculpido no artigo 327 do Código Penal. Entidades estatais são pessoas jurídicas de direito público que integram a estrutura constitucional do Estado e têm poderes políticos e administrativos[187]. Já as representações diplomáticas são integradas pelo corpo diplomático de um determinado país, que é o conjunto de agentes diplomáticos nacionais que têm, entre outras atribuições, as de representação, defesa do status diplomático, proteção, etc[188]. Mas a representação diplomática não é composta exclusivamente por agentes diplomáticos. Ela é integrada por um pessoal técnico e administrativo, v.g., secretárias, criptógrafos, que também podem ser considerados funcionários públicos estrangeiros. País estrangeiro, de acordo com a Convenção sobre o Combate à Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais, inclui todos os níveis e subdivisões de governo, do federal ao municipal (artigo 1.4, b).

O Código Penal equipara ainda a funcionário público estrangeiro quem exerce cargo, emprego ou função em empresas controladas, diretamente ou indiretamente, pelo Poder Público de país estrangeiro ou em organizações públicas internacionais (art.337-D, parágrafo único). Estas últimas são associações de Estados, estabelecidas por tratados, que têm uma constituição e órgãos comuns e têm personalidade legal distinta de seus membros (v.g., ONU, OIT, OMS, FMI)[189]

Registre-se que a lei também incrimina a conduta daquele que promete, oferece ou dá, direta ou indiretamente, vantagem indevida a terceira pessoa, distinta do funcionário público estrangeiro, para que esta o determine a praticar, omitir ou retardar ato de ofício relacionado à transação comercial internacional.

Ao perpetrar o delito, o agente tem por finalidade determinar o funcionário público estrangeiro a praticar, omitir ou retardar ato de ofício relacionado à transação comercial internacional. Praticar significa levar a efeito, fazer, realizar, cometer, executar o ato, enquanto que omitir implica deixar de fazer, não atuar ou não manifestar-se. Ao retardar a prática de ato de ofício, o funcionário público adia, protela ou procrastina a sua execução. Destarte, a corrupção visa fazer com que o funcionário não realize o ato inerente à sua função no prazo legalmente estabelecido ou deixe fluir prazo temporal relevante para a sua prática. Observe-se, que ao se omitir, o funcionário queda inerte, com o manifesto propósito de não realizar o ato, ao passo, que ao retardar, a sua intenção é de apenas protrair no tempo a feitura do ato.

Exige-se que a vantagem indevida ofertada, prometida ou dada esteja relacionada a um ato próprio do ofício do funcionário público, relacionado à transação comercial internacional. Se a conduta visa à prática de ato não compreendido na esfera de competência do funcionário estrangeiro, não se amolda ao tipo em apreço, podendo configurar outro delito (v.g., tráfico de influência)[190]. É importante destacar, porém, que não há crime se o agente promete, oferece ou dá vantagem a funcionário público estrangeiro com vistas a livrar-se de ato ilegal praticado por este[191].

Relação comercial internacional¸ elemento normativo do tipo de valoração extrajurídica, é toda operação de caráter mercantil levada a cabo entre pessoas físicas ou jurídicas (empresas), públicas ou privadas, pertencentes a diferentes países. “Relação” aqui abrange negócios, contratos, acordos, intercâmbios, etc. São expressamente excluídos os convênios meramente culturais, políticos ou militares, exceto quando tais acordos contenham cláusulas de natureza comercial.

Destarte, o tipo penal em apreço não incrimina a corrupção ativa em toda e qualquer transação internacional, mas apenas aquela de cunho mercantil ou comercial. Se assim não fosse, chegar-se-ia ao absurdo de um Estado ter de incriminar qualquer um de seus nacionais que oferecesse vantagem indevida a um policial de outro país a fim de evitar a aplicação de uma simples multa de trânsito[192].

Importa destacar que pequenos mimos oferecidos ao funcionário público estrangeiro sem o propósito de corrompê-lo não configuram o tipo de injusto em análise, de forma que as homenagens feitas a funcionário por estima ou admiração, ou os pequenos presentes recebidos por mera cortesia, como, por exemplo, comidas e bebidas oferecidas por ocasião das festividades natalinas ou de Ano Novo não tipificam o delito em exame, pois aqui não se identifica o ânimo de corromper e tampouco a consciência do funcionário de praticar, retardar ou omitir nenhum ato funcional, movido pela venalidade.

Elemento subjetivo do tipo é o dolo, consubstanciado na consciência e vontade de oferecer, prometer ou dar vantagem indevida a funcionário público estrangeiro, ou a terceira pessoa, acrescido do elemento subjetivo do injusto consistente no especial fim de agir,que, nesse caso, constitui-se no escopo de levar o funcionário a praticar, omitir ou retardar ato de ofício relacionado a transação comercial internacional. Não é necessário, porém, para a configuração do delito, que essa finalidade seja efetivamente alcançada.

Trata-se, nas duas primeiras modalidades (prometer e oferecer), de delito de atividade, que se consuma com o simples conhecimento, por parte do funcionário público estrangeiro ou da terceira pessoa corrompida do oferecimento ou promessa de vantagem indevida, ainda que ao final seja recusada a proposta delituosa. Já na terceira modalidade de conduta delitiva (dar), o crime é de resultado, exigindo-se que o agente efetivamente conceda a vantagem material ou moral ao funcionário público. Nos dois primeiros casos, a tentativa é admissível apenas na hipótese de a conduta ser praticada por escrito, ocorrendo interceptação antes que a proposta chegue ao conhecimento do funcionário público ou da terceira pessoa corrompida. A última modalidade, porém, admite tentativa, qualquer que seja o meio de que se utiliza o agente para cometer o delito.

O crime pode ser classificado, portanto, como comum, de mera atividade (nas duas primeiras modalidades) ou de resultado (na terceira modalidade), de forma livre, doloso e comissivo. Registre-se que se trata de tipo autônomo em relação ao crime de corrupção ativa, previsto no artigo 333 do Código Penal. 

4.                  Causa de aumento de pena

Consoante o exposto acima, não é necessário que o funcionário público estrangeiro efetivamente pratique, omita ou retarde ato de ofício relacionado a transação comercial internacional para que o crime de corrupção ativa se aperfeiçoe. Todavia, ocorrendo o exaurimento da conduta delitiva, prevê o parágrafo único do artigo 337-B que, se o funcionário público estrangeiro retarda ou omite ato de ofício, ou o pratica infringindo dever funcional, a pena daquele que lhe prometeu, ofereceu ou deu vantagem indevida será aumentada de um terço.

Como já se salientou oportunamente, o retardamento do ato de ofício denota o escoamento do prazo para a consecução do ato ou o fluxo do lapso temporal necessário para sua prática. Já na omissão, o funcionário público estrangeiro deixa de praticar o ato sobre o qual gravita o delito, enquanto que, na última modalidade, ele pratica ato não permitido, atentando contra o dever inerente à função.

Essa causa de aumento de pena atua sobre a medida da culpabilidade, já que o agente, ao atingir seu objetivo, macula a boa-fé das relações comerciais internacionais, o que torna sua conduta visivelmente mais reprovável.  

5. Pena e ação penal

A pena prevista para o delito de corrupção ativa em transação comercial internacional é de um a oito anos de reclusão. Caso o funcionário público estrangeiro, em razão da corrupção, efetivamente retarde ou omita ato de ofício, ou o pratique infringindo dever funcional, a pena do corruptor será aumentada de um terço.

Admite-se a suspensão condicional do processo, em virtude da pena mínima abstratamente cominada ser igual a um ano. A ação penal é pública incondicionada. 

II – D. Tráfico de influência em transação comercial internacional

Art.337-C. Solicitar, exigir, cobrar ou obter, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, vantagem ou promessa de vantagem a pretexto de influir em ato praticado por funcionário público estrangeiro no exercício de suas funções, relacionado a transação comercial internacional:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

Parágrafo único. A pena é aumentada da metade, se o agente alega ou insinua que a vantagem é também destinada a funcionário estrangeiro. 

Funcionário público estrangeiro

Art.337-D. Considera-se funcionário público estrangeiro, para os efeitos penais, quem, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública em entidades estatais ou em representações diplomáticas de país estrangeiro.

Parágrafo único. Equipara-se a funcionário público estrangeiro quem exerce cargo, emprego ou função em empresas controladas, direta ou indiretamente, pelo Poder Público de país estrangeiro ou em organizações públicas internacionais. 

1. Introdução

Conforme salientado no item anterior, os delitos de corrupção ativa e de tráfico de influência em transação comercial internacional foram inseridos no Título XI do Código Penal, dedicado aos crimes contra a administração pública, pela Lei 10.467, de 11 de junho de 2002, promulgada com o objetivo de dar efetividade ao Decreto 3.678, de 2000, que recepciona a Convenção sobre o Combate à Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais, concluída em Paris, em 1997.

Cumpre registrar que o delito de tráfico de influência já constava da legislação pátria, como forma de incriminação da conduta do particular que pretendesse influir em ato praticado por funcionário público nacional no exercício de sua função (art.332). Com a edição da Lei 10.467, idêntica conduta passou a ser tipificada quando praticada no âmbito das relações comerciais internacionais.   

2. Bem jurídico protegido e sujeitos do delito

Registre-se, mais uma vez, que não andou bem o legislador ao inserir a corrupção ativa e o tráfico de influência em transação comercial internacional no título dedicado aos crimes contra a administração pública, pois não é esse o bem jurídico tutelado por essas condutas delitivas.

Não é correto supor que o Estado que tipifica o tráfico de influência sobre ato praticado por funcionário público estrangeiro visa tutelar a administração pública de outro país. Na realidade, trata-se aqui de preservar a boa-fé, a regularidade e a transparência das relações comerciais e econômicas internacionais, pois a concorrência entre empresas deve se dar de forma honesta, e com a lealdade que deve existir entre os Estados, que não podem tolerar o engrandecimento da economia de alguns deles à custa da corrupção do setor público de outros. Assim, o bem jurídico boa-fé, regularidade e transparência das relações comerciais internacionais não pertence exclusivamente a certo Estado: seu titular é a própria comunidade internacional, pois a todos os países interessa preservar a liberdade no sistema de intercâmbio e evitar que sejam onerados o seu povo e as suas empresas com o pagamento de encargos destinados a cobrir o rombo nas contas públicas gerado pela corrupção[193]. E para esse novo bem jurídico erigiu-se um novo tipo de proteção, levada a cabo mediante o exercício da jurisdição de todos os Estados em prol do interesse comum.

Nos últimos tempos, junto a uma notável expansão da atividade administrativa estatal, verificou-se o grave fenômeno de que, sob um pretendido desejo de eficácia, não foram introduzidos os mecanismos necessários de controle e de garantia de objetividade, ao mesmo tempo em que uma sucessão de reformas enfraqueceu muitos dos instrumentos de controle que antes existiam, gerando uma situação de desequilíbrio em favor do Poder Executivo. Essa situação é particularmente alarmante, pois propicia o desenvolvimento da corrupção em geral, e do tráfico de influência em particular[194].

Com a incriminação do tráfico de influência, visa o legislador brasileiro censurar a utilização da Administração Pública para a satisfação de interesses particulares em prejuízo do interesse geral, que supõe uma grave inversão dos valores e princípios que legitimam a atuação administrativa[195]. Observe-se, porém, que não se desvalora o mero ato de interferir no desempenho da função pública de maneira improcedente, indiscreta ou inoportuna. É preciso que a interferência implique o exercício de uma influência que seja portadora de um desvalor da ação elevado, por ter sido levada a cabo em condições que a tornam especialmente desvaliosa[196].

Sujeito ativo do delito de tráfico de influência em transação comercial internacional pode ser qualquer pessoa que solicite, exija, cobre ou obtenha, para si ou para outrem, vantagem ou promessa de vantagem a pretexto de influir em ato praticado por funcionário público estrangeiro (crime comum). Sujeito passivo é a pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que se vê lesada pela transação mercantil concluída com desrespeito à transparência e à boa-fé que devem imperar nas relações comerciais, além da comunidade internacional, que tem interesse direto no progresso econômico das nações e no incentivo do comércio transnacional, pautado pela observância das regras de concorrência. 

3. Tipicidade objetiva e subjetiva

O artigo 337-C do Código Penal incrimina a conduta daquele que solicita, exige, cobra ou obtém, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, vantagem ou promessa de vantagem a pretexto de influir em ato praticado por funcionário público estrangeiro no exercício de suas funções, relacionado a transação comercial internacional. Trata-se de tipo autônomo, misto alternativo, anormal e incongruente.

As condutas típicas estão representadas pelos verbos solicitar, que significa pedir, rogar, procurar; exigir, que expressa o ato de ordenar, reclamar, determinar; cobrar, que tem o sentido de fazer ser pago; obter, que significa angariar, conseguir, receber, adquirir. O agente solicita, exige, cobra ou obtém alguma vantagem, para si próprio ou para terceira pessoa, sob a alegação de que irá influir em ato praticado por funcionário público estrangeiro, relacionado a transação comercial internacional.

O agente, portanto, afirma ter influência sobre funcionário público estrangeiro e promete colocar dita influência a serviço do interesse de terceira pessoa, em troca de vantagem ou de promessa de sua concreção. E, ao fazê-lo, atua com fraude, enganando quem espera que ele, valendo-se de seu anunciado prestígio junto a funcionário público estrangeiro, efetivamente exerça alguma influência sobre seus atos. Todavia, quando o agente, de fato, tem alguma influência junto ao funcionário e, sem alardeá-la, desenvolve atividade junto àquele, não comete o delito em apreço[197].

Embora o tipo requeira que a fraude diga respeito aos atos praticados por funcionário público estrangeiro, não é necessário que se trate de pessoa determinada ou que seu nome seja mencionado à pessoa iludida, podendo ocorrer, inclusive, que o agente público em questão seja incompetente para a realização do ato ou que sequer exista de verdade[198]. Todavia, no caso de o agente público ser identificado pelo agente, deve ele ser funcionário público estrangeiro, sob pena de não se configurar o delito (v.g., se se trata de funcionário público brasileiro, o delito será o do artigo 332 do CP).

Insta registrar que o crime poderá ser praticado direta ou indiretamente, isto é, pode ocorrer ainda quando o agente alega ter influência sobre terceira pessoa, que, de sua parte, é quem realmente desfruta de prestígio junto a funcionário público estrangeiro, e que pretende poder influenciar ato por este praticado.

Objeto material do delito é a vantagem, ou a promessa de vantagem, que pode assumir a forma de qualquer proveito ou benefício visado pelo agente, seja de natureza material ou moral. A vantagem pode ser almejada pelo próprio autor do delito para si mesmo ou para terceira pessoa.

O autor busca obter a vantagem prometendo influir sobre ato praticado por funcionário público estrangeiro no exercício de suas funções, desde que relacionado a transação comercial internacional. O conceito de funcionário público estrangeiro é fornecido pelo artigo 337-D do Código Penal e já foi analisado por ocasião do estudo do delito do dispositivo anterior. O ato sobre o qual o agente promete exercer influência deve ser relacionado a transação comercial internacional; do contrário, a conduta será atípica.

O elemento subjetivo do tipo é representado pelo dolo. O tipo subjetivo é integrado ainda pelo elemento subjetivo do injusto consistente na intenção do agente de obter “para si ou para outrem” vantagem ou promessa de vantagem a pretexto de influir em ato praticado por funcionário público estrangeiro. 

Sendo delito de atividade, nas três primeiras modalidades (solicitar, exigir e cobrar) consuma-se com a simples prática dessas condutas, independentemente de qualquer outro resultado. Na modalidade obter, é delito de resultado, de forma que só se aperfeiçoa com o efetivo recebimento da vantagem ou com a promessa de obtê-la. A tentativa é possível em todos os casos, embora nas três primeiras hipóteses seja de difícil configuração.

O delito pode ser classificado, portanto, como comum, de mera atividade (nas três primeiras modalidades) ou de resultado (na terceira modalidade), de forma livre, doloso e comissivo. Observe-se que esse delito constitui tipo autônomo em relação ao crime descrito no artigo 332 do Código Penal (tráfico de influência). 

4. Causa de aumento de pena

Caso o agente, além de iludir a outrem, alegando desfrutar de influência na prática de ato de ofício por parte de funcionário público estrangeiro, alegue ou insinue que a vantagem é também destinada a este último, a pena será aumentada da metade. Alegar significa citar, mencionar, ao passo que insinuar consiste no ato de persuadir, dar a entender de modo sutil ou indireto. Não é necessário, porém, que a pessoa enganada acredite que a vantagem se destina a funcionário estrangeiro, sendo bastante alegação ou insinuação desse fato pelo autor.

Essa causa de aumento de pena atua sobre a medida da culpabilidade, uma vez que é maior a reprovabilidade da conduta daquele que, além de prometer falsamente exercer influência sobre ato de ofício de funcionário público estrangeiro, alega ou insinua que também este será beneficiado pela vantagem eventualmente recebida.  

5. Pena e ação penal

A pena prevista para o delito em análise é de dois a cinco anos de reclusão, além da pena pecuniária, para a conduta descrita no caput, sanção que será aumentada da metade caso ocorra a circunstância descrita no parágrafo único do artigo 337-C.

A ação penal é pública incondicionada. 

PARTE III

ESTUDO COMPARATIVO ENTRE A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA E A CONVENÇÃO INTERAMERICANA CONTRA A CORRUPÇÃO

1. Artigo VI. Atos de corrupção. Alínea “a”

1.1. Sujeito ativo

            A Convenção Interamericana contra a Corrupção considera “funcionário público”, “funcionário de governo” ou “servidor público” qualquer funcionário ou empregado de um Estado ou de suas entidades, inclusive os que tenham sido selecionados, nomeados ou eleitos para desempenhar atividades ou funções em nome do Estado ou a serviço do Estado em qualquer de seus níveis hierárquicos (artigo I). Trata-se de conceito mais amplo do que aquele constante da legislação brasileira (art.327, Código Penal), pois permite incluir os funcionários de órgãos que não pertençam aos três Poderes e as pessoas que tenham sido designadas ou eleitas para um cargo mas ainda não tenham assumido suas funções.

Sugere-se, portanto, que a legislação nacional amplie o conceito de funcionário público, de forma que possam figurar como sujeitos ativos do delito de corrupção aquelas pessoas que tenham sido selecionadas (aprovadas em concurso público), designadas (nomeadas) para ocupar um cargo público, ou eleitas para exercer mandato político, e enriqueçam ilicitamente antes de iniciar o desempenho de suas funções.

            Todavia, importa aqui agregar, por oportuno, que o tipo do delito de corrupção passiva, descrito pelo artigo 317 do Código Penal brasileiro, incrimina a conduta do agente público que solicita ou recebe vantagem indevida “ainda que fora da função ou antes de assumi-la”. Nesse particular aspecto, a norma incriminadora alcança aqueles que, embora não estando no efetivo exercício da função pública, utilizam-se dela para a prática da corrupção, além dos que se encontram temporariamente afastados do cargo, em razão de férias, licença, etc. É ainda tipificada pela lei brasileira a corrupção do funcionário que, embora nomeado, ainda não tenha assumido suas funções. Semelhante previsão, contudo, não existe nos demais delitos contra a Administração Pública, sendo própria da corrupção passiva. O tratamento específico não tem razão de ser, de forma que o conceito mais amplo de funcionário público deveria ser trasladado para a norma genérica do artigo 327, de forma que pudesse ser aplicado também às outras figuras típicas.

Em tese, o conceito de funcionário público não se estende a pessoas que não estejam vinculadas a um dos três Poderes da República (Executivo, Legislativo e Judiciário), uma vez que, segundo a Constituição Federal brasileira, não existe Administração Pública, direta ou indireta, fora do âmbito de algum dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios (art.37, caput). Contudo, o próprio Código Penal determina que “equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública” (art.327, §1º). Destarte, condizente com a necessidade cada vez maior de descentralização do serviço público, a lei penal concede idêntico tratamento aos funcionários de entidades paraestatais e de empresas privadas que estejam exercendo atividade própria do Estado.  

1.2. Tipo penal: descrição da conduta

            A alínea “a” do artigo VI da Convenção incrimina a corrupção passiva, descrevendo-a como “a solicitação ou a aceitação, direta ou indiretamente, por um funcionário público ou pessoa que exerça funções públicas, de qualquer objeto de valor pecuniário ou de outros benefícios como dádivas, favores, promessas ou vantagens para si mesmo ou para outra pessoa ou entidade em troca da realização ou omissão de qualquer ato no exercício de suas funções públicas”.

Ao descrever a corrupção passiva em seu artigo 317, o Código Penal brasileiro emprega os verbos “solicitar”, “receber” e “aceitar”, relacionados à vantagem ou à promessa de vantagem indevida. Com isso, utiliza fórmula mais abrangente que a da Convenção, pois a simples solicitação da vantagem não implica seu efetivo recebimento, que também deve ser objeto de incriminação, pois nesse caso é ainda mais grave o desvalor do resultado da conduta delitiva.

            Por outra parte, a Convenção se refere a qualquer objeto de valor pecuniário ou outros benefícios, dando como exemplos destes últimos “dádivas, favores, promessas ou vantagens”, ao passo que a lei penal brasileira reúne todos esses elementos sob a denominação única de “vantagem indevida”, que tem o sentido de qualquer benefício ou proveito contrário ao Direito. Nesse ponto, alinha-se ao texto da Convenção empregando fórmula concisa e capaz de açambarcar também as vantagens de natureza não-patrimonial. Consoante já salientado, porém, essa definição não abrange, diante no ordenamento pátrio, aquelas ofertas de menor monta, feitas ao funcionário por estima ou admiração, bem como os pequenos presentes recebidos por ocasião de datas comemorativas, já que, destituídos de caráter retributivo, não têm o condão de corromper o funcionário, determinando-o a praticar ato funcional movido pela venalidade.

Observe-se ainda que a classificação da vantagem como “indevida” pela lei brasileira não restringe o significado que a ela se atribui: o simples fato de o funcionário receber vantagem em troca do favorecimento de interesses particulares em detrimento do bem comum já lhe confere o caráter contrário ao Direito.

            O texto da Convenção, contudo, é mais abrangente que o da lei brasileira ao mencionar que a vantagem se destina ao próprio funcionário ou a outra pessoa ou “entidade”. Nesse particular, sugere-se que o Código Penal elenque, entre os possíveis beneficiados com o proveito da corrupção passiva, também as pessoas jurídicas, pois não é improvável que com sua conduta o funcionário vise favorecer empresas – hipótese que diante da atual lei penal brasileira resta atípica.

            Ao exigir que a corrupção passiva se dê necessariamente em troca da realização ou omissão de qualquer ato do funcionário no exercício de suas funções públicas, a Convenção antecipa circunstância que, perante o Código Penal brasileiro, não precisa necessariamente ocorrer para que se configure a corrupção passiva. Na hipótese de que o funcionário efetivamente retardar ou deixar de praticar qualquer ato de ofício ou o praticar infringindo dever funcional, a pena prevista pela lei brasileira será aumentada de um terço. A intenção de determinar o funcionário a praticar, omitir ou retardar ato de ofício é mais evidente no delito de corrupção ativa, em que o autor atua movido principalmente por esse fim. Na corrupção passiva, basta, por parte do funcionário, a simples solicitação, recebimento ou aceitação de vantagem ou promessa de vantagem indevida, independentemente de que em troca tenha em mente o intuito de realmente realizar ou omitir ato de ofício em proveito do particular. 

1.3. Sanções

            No que diz respeito às sanções previstas para o delito de corrupção passiva pelo Código Penal brasileiro (um a oito anos de reclusão, além de multa), é importante destacar que a pena mínima deveria ser elevada para três anos de reclusão, pois o atual limite – um ano – permite a concessão de benefícios pouco condizentes com as necessidades de controle e repressão desse delito (v.g., suspensão condicional do processo, nos termos do artigo 89 da Lei 9.099/95). Por outro lado, desde que a pena privativa de liberdade efetivamente aplicada não ultrapasse quatro anos, o réu não seja reincidente em crime doloso, e a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias, o autorizem, será possível a substituição por penas restritivas de direitos (art.44, I, II e III do Código Penal). Essas penas operam de forma substitutiva, e dentre elas figuram a perda de bens e valores e a prestação pecuniária (art.43, I e II). Ainda, conforme oportunamente já se destacou, constitui efeito extrapenal específico da condenação a perda do cargo, função ou mandato eletivo nas hipóteses em que seja aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública ou quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a quatro anos, nos demais casos (art.92, I, a e b). Nenhuma dessas conseqüências legais tem lugar, porém, quando o processo é suspenso e, expirado o prazo da suspensão sem que ocorra revogação, é extinta a punibilidade do delito.

A pena máxima atualmente prevista, de oito anos de reclusão, deveria ser reduzida para seis anos, não só pelo fato da ineficácia de penas muito longas, mas também em razão da causa de aumento prevista no §1º do artigo 317, que aumenta a pena de um terço quando exaurido o delito.

            De acordo com a lei penal brasileira, é também possível, nos casos em que o agente voluntariamente repara o dano ou restitui a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, a redução da pena de um a dois terços (art.16 do Código Penal). É possível ainda a atenuação genérica da pena quando tenha o agente procurado, por sua espontânea vontade e com eficiência, logo após o crime, evitar-lhe ou minorar-lhe as conseqüências, ou tenha, antes do julgamento, reparado o dano (art.65, III, b).

            Na esfera processual, sugere-se a adoção de medidas cautelares menos lesivas ao investigado do que a prisão, tal como aquela destinada ao afastamento cautelar do exercício da função (com manutenção dos proventos facultada conforme o caso concreto), sempre que o exercício da atividade funcional possa dificultar a investigação e criar óbices à produção da prova, sem que se mostre necessária a privação da liberdade. Essa medida atende os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade em sede de cautelares penais, e propicia novo instrumento apto a garantir a eficácia da investigação, sendo consentâneo com os propósitos da Convenção constantes do artigo II, inciso 1 (promoção e fortalecimento, por iniciativa de cada um dos Estados-partes, dos mecanismos necessários para prevenir, detectar, punir e erradicar a corrupção). 

2. Artigo VI. Atos de corrupção. Alínea “b”

2.1. Tipo penal. Descrição da conduta

            Na alínea “b” do artigo VI, a Convenção tipifica a corrupção ativa, descrevendo-a como “a oferta ou outorga, direta ou indiretamente, a um funcionário público ou pessoa que exerça funções públicas, de qualquer objeto de valor pecuniário ou de outros benefícios, como dádivas, favores, promessas ou vantagens a esse funcionário público ou a outra pessoa ou entidade em troca da realização ou omissão de qualquer ato no exercício de suas funções públicas”.

Nesse aspecto, o Código Penal brasileiro, que prevê a corrupção ativa em seu artigo 333, é menos amplo, pois alude apenas aos atos de “oferecer” ou “prometer” vantagem indevida, deixando de lado as hipóteses em que o corruptor efetivamente outorga o proveito ao funcionário. Ainda, não faz menção à possibilidade de que a conduta seja praticada direta ou indiretamente. Sugere-se, assim, a inserção desses elementos no tipo legal desse delito pelo legislador pátrio.

            O conceito de “vantagem indevida”, aqui novamente empregado pela lei brasileira, não restringe nem amplia o sentido que a ela atribui a Convenção, conforme salientado acima.

            Entretanto, por outra parte, a Convenção prevê apenas os casos de “realização” ou “omissão” do ato de ofício pelo funcionário público, esquecendo de mencionar os atos de corrupção tendentes a tão-somente “retardar” a sua prática. Nesse ponto, portanto, é preferível a redação brasileira, que conta ainda com uma causa de aumento de pena para as hipóteses em que, em razão da vantagem ou promessa de vantagem, o funcionário efetivamente retarda ou omite ato de ofício, ou o pratica infringindo dever funcional.  

2.2. Sanção

            No que diz respeito às sanções previstas para o delito de corrupção ativa, é mister criticar aqui postura do legislador brasileiro ao equiparar o tratamento dado à corrupção passiva e àquela perpetrada pelo particular, violando o princípio constitucional da proporcionalidade das penas[199]. Para ambos os delitos, o Código Penal brasileiro prevê pena de reclusão, de 1 (um) a 8 (oito) anos, e multa. Insta salientar, porém, que o particular, ao contrário do funcionário público, não infringe os deveres de fidelidade, moralidade e probidade, próprios do exercício da função pública, quando da prática da corrupção ativa, o que denota o menor desvalor de sua conduta. Por essa razão, sugere-se que as margens penais dessa figura de delito sejam alteradas para 1 (um) a 4 (quatro) anos de reclusão, além da multa. 

3. Artigo VI. Atos de corrupção. Alínea “c”

            Nessa oportunidade, tipifica a Convenção “a realização, por parte de um funcionário público ou pessoa que exerça funções públicas, de qualquer ato ou omissão no exercício de suas funções, a fim de obter ilicitamente benefícios para si mesmo ou para um terceiro”. Essas condutas caracterizam abuso de poder, que ocorre sempre que a autoridade pública, embora competente para praticar o ato, ultrapassa os limites de suas atribuições ou se desvia das finalidades administrativas. O abuso de poder tanto pode revestir a forma comissiva quanto a omissiva, pois ocorre quando o funcionário, competente para realizar o ato, vai além do permitido e exorbita no uso de suas faculdades administrativas (excesso de poder) ou quando o funcionário deixa transcorrer o prazo necessário para a prática do ato (omissão da Administração). 

O abuso de autoridade é tipificado pela Lei 4.898/65, mas não engloba ações ou omissões de funcionários públicos tendentes à obtenção de vantagens ilícitas para si ou para outrem. Sugere-se, assim, seja inserida pelo legislador pátrio a seguinte figura como forma de prática de abuso de autoridade: “Praticar o funcionário público, no exercício de suas funções, ação ou omissão com o fim de obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita”. 

4. Artigo VI. Atos de corrupção. Alínea “d”

            Nesse dispositivo, a Convenção determina a incriminação do “aproveitamento doloso ou a ocultação de bens provenientes de qualquer dos atos a que se refere este artigo”.

            Trata-se aqui, por sem dúvida, de incriminar o encobrimento ou a “lavagem” de bens decorrentes dos atos de corrupção em geral. No Brasil, a Lei 9.613, de 3 de março de 1998, dispõe sobre os crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores. Incrimina, entre outras condutas, o ato de “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime: I – de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins; II – de terrorismo; III – de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção; IV – de extorsão mediante seqüestro; V – contra a Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão de atos administrativos; VI – contra o sistema financeiro nacional” (art.1º, caput), reservando a essas condutas a pena de reclusão, de três a dez anos, além de multa. Observe-se que o inciso IV, que tipifica a “lavagem” de dinheiro proveniente de qualquer delito contra a Administração Pública, faz expressa menção aos atos de corrupção.

Incorre na mesma pena aquele que, de posse de bens, direitos ou valores provenientes de qualquer um dos crimes acima referidos: “I – os converte em ativos lícitos; II – os adquire, recebe, troca, negocia, dá ou recebe em garantia, guarda, tem em depósito, movimenta ou transfere; III – importa ou exporta bens como valores não correspondentes aos verdadeiros” (art.1º, §1º); ou ainda quem: “I – utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores que sabe serem provenientes de qualquer dos crimes antecedentes referidos neste artigo; II – participa de grupo, associação ou escritório tendo conhecimento de que sua atividade principal ou secundária é dirigida à prática de crimes previstos nesta Lei” (art.1º, §2º). Todas as formas típicas são dolosas, uma vez que não há expressa previsão de conduta decorrente de mera culpa.

A pena será aumentada de um a dois terços nos casos previstos no caput do artigo 1º se  crime for cometido de forma habitual ou por intermédio de organização criminosa (art.1º, §4º). Impõe registrar que tais delitos são insuscetíveis de fiança ou liberdade provisória (art.3º).

            Ante o exposto, acredita-se que a legislação brasileira já se encontra devidamente alinhada ao texto da Convenção, com incriminação coerente com aquela sugerida por este último diploma. É muito comum que a ocultação de bens provenientes de atos de corrupção se dê por intermédio de pessoas denominadas “testas-de-ferro”, que aparecem como os verdadeiros proprietários dos bens que o funcionário adquire como produto do delito. O legislador pátrio não ignorou, assim, que a tipificação da “lavagem” de dinheiro é uma forma eficaz de combater não apenas a corrupção, mas também o narcotráfico e o crime organizado em geral.  

5. Artigo VI. Atos de corrupção. Alínea “e”

            A Convenção equipara ainda a ato de corrupção “a participação, como autor, co-autor, instigador, cúmplice, acobertador ou mediante qualquer outro modo na perpetração, na tentativa de perpetração ou na associação ou confabulação para perpetrar qualquer dos atos a que se refere este artigo”.

Trata-se aqui de regular o concurso de agentes no delito de corrupção. O vocábulo “participação”, portanto, tem sentido mais amplo,  gramatical, abrangendo não só a instigação ou induzimento e a cumplicidade, mas  também a co-autoria.

A concorrência de duas ou mais pessoas para a prática de um delito é prevista, de forma genérica e aplicável a todos os delitos, nos artigos 29 a 31 do Código Penal brasileiro[200]. Assim, dispõe que quem, de qualquer modo, concorra para o crime incide nas penas a ele cominadas, na medida de sua culpabilidade. Não distingue, portanto, entre autor, co-autor e partícipe (teoria monística), embora trate de matizar ou temperar esse entendimento, estabelecendo certos graus de participação, em um verdadeiro reforço do princípio constitucional da individualização da pena (art.5º, XLVI da Constituição Federal). Daí porque elenca, como causa obrigatória de redução de pena, a participação de menor importância (art.29, §1º do Código Penal), e prevê a aplicação proporcional da pena nos casos de cooperação dolosamente distinta, reafirmando o caráter individual da culpabilidade (art.29, §2º).

            É imperioso destacar também que, de acordo com a lei penal brasileira, o ajuste, a determinação ou instigação e o auxílio, salvo disposição expressa em contrário, não são puníveis, se o crime não chega, pelo menos, a ser tentado (art.31).

            A corrupção ativa ou passiva admite, portanto, o concurso de agentes, na forma de co-autoria ou de participação. As penas aplicadas, porém, deverão ser graduadas de acordo com a medida da culpabilidade de cada um dos agentes.

            No que diz respeito à “associação” ou “confabulação” para perpetrar qualquer um dos atos incriminados pelo artigo, deve-se destacar que não se trata aqui de formas de co-autoria ou participação, que visam à realização de crimes determinados, mas sim da reunião de dois ou mais sujeitos para a comissão de número indeterminado de delitos. Nesse caso, o ordenamento brasileiro conta com a Lei 9.034, de 3 de maio de 1995, que dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e a repressão de ações praticada por organizações criminosas. Organizações criminosas são associações de caráter estável e permanente que visam cometer uma indeterminada série de delitos. A estabilidade é justamente o que distingue a organização criminosa do concurso de pessoas, pois não basta, nos casos em apreço, o simples ajuste de vontades. Este último é indispensável, mas não o bastante para configurar o crime.

            Conclui-se, destarte, que a punição de todas as formas de associação de duas ou mais pessoas para a prática dos delitos configurados no artigo VII da Convenção já se encontra devidamente regulada pela legislação penal brasileira, seja através da disciplina do concurso de agentes, seja mediante a tipificação das atividades decorrentes de organizações criminosas.  

6. Suborno transnacional. Artigo VIII

6.1. Sujeito ativo

            Determina a Convenção que poderão figurar como sujeito ativo do delito de suborno transnacional cidadãos, empresas ou demais pessoas que tenham residência habitual no território de um determinado país. Nos termos da lei civil brasileira, “o domicílio da pessoa natural é o lugar onde ela estabelece residência com ânimo definitivo” (art.70 do Código Civil), sendo considerado também seu domicílio, quanto às relações concernentes à profissão, o lugar onde esta é exercida (art.72, caput). Quando às pessoas jurídicas, seu domicílio será “o lugar onde funcionarem as respectivas diretorias e administrações, ou onde elegerem domicílio especial no seu estatuto ou atos constitutivos” (art.75, IV). Na hipótese de a pessoa jurídica ter vários estabelecimentos em lugares diferentes, cada um deles será considerado domicílio para os atos nele praticados (art.75, §1º). Caso a administração, ou diretoria, tenha sede no estrangeiro, “haver-se-á por domicílio da pessoa jurídica, no tocante às obrigações contraídas por cada uma das suas agências, o lugar do estabelecimento, sito no Brasil, a que ela corresponder” (art.75, §2º).

No que diz respeito à responsabilidade penal das pessoas jurídicas, não se pode negar que a questão constitui ainda hoje tema bastante controvertido e que tem despertado a atenção da doutrina penal em todo o mundo. Isso ocorre principalmente em face do papel cada vez mais importante desempenhado pela pessoa jurídica na sociedade moderna, o que a tem vinculado de modo decisivo ao fenômeno da denominada criminalidade econômica lato sensu (v.g., delitos contra a ordem econômica, relações de consumo, ambiente, etc.). Além disso, são evidentes as dificuldades de individualização da responsabilidade penal das pessoas físicas no interior das complexas estruturas de poder que caracterizam as pessoas jurídicas nacionais ou multinacionais, fato que tem sido objeto de profundas reflexões dos pesquisadores no intuito de buscar uma solução satisfatória.

            Por outra parte, em termos científicos, tem-se como amplamente dominante, desde há muito tempo, no Direito Penal brasileiro, assim como nos demais Direitos de filiação romano-germânica, a irresponsabilidade penal da pessoa jurídica, expressa no conhecido apotegma societas delinquere non potest, verdadeira reafirmação dos postulados da culpabilidade e da personalidade das penas. Isso significa que os crimes praticados no âmbito da pessoa jurídica só podem ser imputados criminalmente às pessoas naturais na qualidade de autores ou partícipes.

            O fundamento dessa orientação reside, essencialmente, no fato de que se encontram ausentes na atividade da própria pessoa jurídica os elementos seguintes: a) capacidade de ação no sentido penal estrito; b) capacidade de culpabilidade (princípio da culpabilidade); c) capacidade de pena (princípio da personalidade da pena), indispensáveis à configuração de uma responsabilidade penal subjetiva[201].

            Com relação ao primeiro aspecto, insta destacar que a pessoa jurídica não tem consciência e vontade – em sentido psicológico – semelhante à pessoa física, e, com isso, capacidade de autodeterminação, faculdades que necessariamente hão de ser tomadas por empréstimo aos homens[202]. Isso equivale a dizer que só o ser humano, enquanto pessoa-indivíduo, pode ser qualificado como autor ou partícipe de um delito. Daí a máxima nullum crimen sine actione e o seu indispensável coeficiente de humanidade[203]. De conseguinte, falta ao ente coletivo o primeiro elemento do delito: capacidade de ação ou omissão (típica). A ação consiste no exercício de uma atividade finalista, no desenvolvimento de uma atividade dirigida pela vontade à consecução de determinado fim. E a omissão vem a ser a não-realização de uma atividade finalista (não-ação finalista).

            Na seqüência, importa agregar que a culpabilidade penal, como juízo de censura pessoal pela realização do injusto típico, só pode ser endereçada a um indivíduo (culpabilidade de vontade)[204]. Como juízo ético-jurídico de reprovação, ou mesmo de motivação normal pela norma, somente pode ter como objeto a conduta humana livre.

A justificação da culpabilidade da pessoa jurídica como culpabilidade por defeito de organização, tendo em conta as categorias sociais (culpabilidade social), não tem sentido, pois a organização defeituosa não pode ser realizada pela própria pessoa coletiva, mas sim por seus dirigentes. Isso implicaria fundamentar a culpabilidade da pessoa jurídica em fato alheio – culpabilidade presumida – , porque a responsabilidade do ente coletivo estaria baseada na imputação do fato culpável de seu órgão ou representante, em uma violação flagrante do princípio da culpabilidade[205]. No Direito pátrio, esse princípio tem agasalho constitucional implícito no princípio da dignidade da pessoa humana (art.1º, III), corroborado pela prevalência dos direitos humanos (art.4º, II) e pela inviolabilidade do direito à liberdade (art.5º, caput), previstos na Constituição Federal brasileira. A responsabilidade penal subjetiva, a seu turno, consta da legislação penal nacional desde o advento do Código Criminal do Império de 1830 (arts.2º, §1º e 3º) até o diploma em vigor, que estabelece expressamente não haver delito sem dolo ou culpa (arts.18 e 19, CP).

No tocante ao terceiro aspecto – a capacidade de pena – ,afirma-se que as idéias de prevenção geral e especial, reafirmação do ordenamento jurídico e ressocialização não teriam sentido em relação às pessoas jurídicas. Na verdade, o princípio da personalidade da pena – nenhuma pena passará da pessoa do condenado (art.5º, XLV, CF) – ,tradicionalmente enraizado nos textos constitucionais brasileiros, impõe que a sanção penal recaia exclusivamente sobre os autores materiais do delito e não sobre todos os membros da corporação (v.g., operários, sócios minoritários, etc.), o que ocorreria caso se lhe impusesse uma pena[206]. Não há lugar aqui para outra interpretação senão a que liga a responsabilidade pessoal à realização de um fato próprio[207], sendo a responsabilidade pessoal sempre e exclusivamente de ordem subjetiva, negando-se, desse modo, qualquer outra modalidade de responsabilidade penal (v.g., coletiva, pelo fato de outrem, etc.). Assim, tão-somente em sentido técnico-jurídico pode ser o ente moral denominado “pessoa”.

Ademais, as pessoas jurídicas não são passíveis sequer de aplicação de medidas de segurança de caráter penal, pois isso implica a prática de uma ação ou omissão típica e ilícita e a verificação da periculosidade.

Isso não implica dizer, porém, que as pessoas jurídicas não possam ser responsabilizadas, na esfera cível, administrativa ou comercial, pelas conseqüências do desenvolvimento de suas atividades.

Não se podem ignorar os proveitos que podem advir para as pessoas jurídicas da prática da corrupção transnacional e o interesse que pode para elas resultar do quebrantamento da boa-fé e da transparência nas transações econômicas internacionais. Assim, e em conclusão, sugere-se, de lege ferenda, que sejam acolhidas sanções de índole administrativa pelo ordenamento penal brasileiro, especialmente destinadas aos entes coletivos (v.g., dissolução da empresa, suspensão ou  encerramento de atividades, proibição de contratar com o Poder Público, revogação de autorizações e licenças, publicação da sentença, intervenção na gestão da empresa, exclusão de benefícios ou subvenções, multa administrativa), aplicadas pelo juiz criminal, nas hipóteses de crime praticado pela pessoa física. Nesse sentido, aliás, e de forma consentânea com os postulados acima referidos, bem se encaminhou o Código Penal espanhol (art.129) ao prescrever uma série de medidas, de natureza administrativa, às pessoas jurídicas, distintas das medidas de segurança de natureza criminal, e que se destinam a “prevenir a continuidade na atividade delitiva e os seus efeitos” (art.129.3). 

6.2. Sujeito passivo

            Conforme o exposto, não constitui sujeito passivo do delito de suborno transnacional o funcionário público de outro Estado, mas a pessoa, física ou jurídica, lesada com a infração das normas do comércio internacional, especialmente no que diz respeito à boa-fé, à regularidade e à transparência dessas relações, além da comunidade internacional, que tem especial interesse em que as trocas mercantis entre os países se verifique com a devida lhaneza e lisura.

Assim, o funcionário público estrangeiro figura não como sujeito passivo, mas como co-autor do delito de suborno transnacional, devendo ser incriminado, em seu país, pelo crime de corrupção passiva. De todo modo, cumpre destacar aqui que o conceito de funcionário público estrangeiro previsto pelo Código Penal brasileiro abarca todo aquele que, “ainda que transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública em entidades estatais ou em representações diplomáticas de país estrangeiro” (art.337-D, caput). Equipara-se ainda a funcionário público estrangeiro quem exerce cargo, emprego ou função em empresas controladas, direta ou indiretamente, pelo Poder Público de país estrangeiro ou em organizações públicas internacionais (art.337-D, parágrafo único). Sugere-se aqui a inclusão daqueles que foram selecionados (aprovados em concurso público) ou designados (nomeados) para exercer cargo, emprego ou função pública nessas instituições, embora ainda não desempenhem efetivamente suas funções. 

6.3. Tipo penal. Descrição da conduta

            A Convenção estabelece que, “sem prejuízo de sua Constituição e dos princípios fundamentais de seu ordenamento jurídico, cada Estado-Parte proibirá e punirá o oferecimento ou outorga, por parte de seus cidadãos, pessoas que tenham residência habitual em seu território e empresas domiciliadas no mesmo, a um funcionário público de outro Estado, direta ou indiretamente, de qualquer objeto de valor pecuniário ou outros benefícios, como dádivas, favores, promessas ou vantagens em troca da realização ou omissão, por esse funcionário, de qualquer ato no exercício de suas funções públicas relacionado com uma transação de natureza econômica ou comercial” (artigo VIII).

Até recentemente considerado uma lacuna na legislação nacional, o suborno de funcionário público estrangeiro foi recentemente inserido no Código Penal brasileiro sob a rubrica “corrupção ativa em transação comercial internacional” (art.337-B). O novo texto condiz com a orientação da Convenção e amplia ainda mais o seu sentido, pois não sanciona apenas o “oferecimento” e a “outorga”, mas também a “promessa” de vantagem indevida a funcionário público estrangeiro e também a “terceira pessoa” que sobre ele possa exercer influência, para determiná-lo a “praticar”, “omitir” ou ainda “retardar” – verbo que não consta no texto da Convenção – ato de ofício relacionado a transação comercial internacional. O significado do termo “vantagem” já foi explicitado em ocasião anterior, mas é importante destacar que abrange, sem maiores esforços interpretativos, todos os benefícios elencados pela Convenção.

            Prevê ainda a lei brasileira uma causa de aumento de pena para as hipóteses em que, em razão da vantagem ou promessa, o funcionário público estrangeiro retarda ou omite ato de ofício, ou o pratica infringindo dever funcional. Sugere-se apenas que a lei brasileira dê alcance maior ao tipo legal do artigo 337-B, agregando à expressão “transação comercial internacional” o adjetivo “econômica”, a exemplo do que faz a Convenção. Isso porque nem toda transação comercial será necessariamente econômica: a economia liga-se à produção, distribuição, acumulação e consumo de bens materiais, ao passo que o comércio cinge-se à compra e venda de valores, tendo significado mais específico. Além disso, as transações econômicas abrangem também aquelas de caráter financeiro.

            O Código Penal brasileiro incrimina ainda o tráfico de influência em transação comercial internacional, que se efetiva nos casos em que o particular solicita, exige, cobra ou obtém, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, vantagem ou promessa de vantagem a pretexto de influir em ato praticado por funcionário público estrangeiro no exercício de suas funções, relacionado a transação comercial internacional (art.337-C). A pena será aumentada da metade se o agente alega que a vantagem é também destinada a funcionário público estrangeiro. Registre-se que semelhante conduta, lamentavelmente, não é prevista pela Convenção, embora sua prática seja comum e contribua sobremaneira para a violação da boa-fé e da transparência das relações mercantis e econômicas em nível internacional[208].

            Observe-se que, de acordo com as regras de aplicação extraterritorial da lei penal brasileira, constantes do Código Penal, ficam sujeitos à lei nacional, embora cometidos no estrangeiro, os crimes que, por tratado ou convenção, o Brasil se obrigou a reprimir (art.7º, II, a) e os praticados por brasileiro (art.7º, II, b), desde que, simultaneamente: a) o agente entre em território nacional; b) o fato seja punível também no país em que foi praticado; c) o crime esteja incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição; d) não tenha o agente sido absolvido no estrangeiro ou não tenha aí cumprido pena e e) não tenha o agente sido perdoado no estrangeiro ou, por outro motivo, não esteja extinta a punibilidade, segundo a lei mais favorável (art.7º, §2º). Na hipótese de haver julgamento pelo mesmo delito no Brasil e no exterior, a pena cumprida no estrangeiro atenua a pena imposta no Brasil pelo mesmo crime, quando diversas, ou nela é computada, quando idênticas (art.8º).

É imperioso destacar, porém, que fica expressamente vedada a extradição de nacionais (art.5º, LI da Constituição Federal e art.77, I da Lei 6.815/80).Todavia, cumpre asseverar que a aplicação da lei brasileira aos delitos perpetrados por nacionais em qualquer lugar em que se encontrem tem por finalidade evitar a impunidade de delitos perpetrados em país estrangeiro por nacionais de outro Estado (aut dedere aut punire), porque na maioria dos países vige a regra da não-extradição de seus cidadãos. Diante da possibilidade de punir ou entregar ao Estado legitimado para a punição, o denominado princípio da personalidade dá preferência à primeira opção, como forma de proteção que os Estados conferem aos seus súditos ante o jus puniendi estrangeiro.  

7. Enriquecimento ilícito

7.1. Sujeito ativo. Definição: funcionário público

            Embora não exista previsão do delito de enriquecimento ilícito na legislação penal brasileira, é oportuno adiantar que o conceito de funcionário público que figura no artigo 327 do Código Penal deverá permanecer vigente também para as hipóteses de incriminação dessa conduta. 

7.2. Tipo penal. Descrição da conduta

            Nos termos da Convenção, “os Estados-Partes que ainda não o tenham feito adotarão as medidas necessárias para tipificar como delito em sua legislação o aumento do patrimônio de um funcionário público que exceda de modo significativo de sua renda legítima durante o exercício de suas funções e que não possa justificar razoavelmente” (artigo IX).

            O enriquecimento ilícito é a figura penal que mais leva em conta os efeitos do delito de corrupção, porque atinge de forma direta o objetivo perseguido pelo funcionário corrupto: a aquisição de bens e sua ostentação. Por essa razão, constitui importante arma no combate aos crimes contra a Administração Pública.

            Conforme o exposto, o Brasil não tipificou o enriquecimento ilícito de seus agentes públicos, embora a legislação especial determine a aplicação de uma série de sanções de caráter administrativo e civil nesses casos (Lei 8.492/92). Tendo em vista a evidente necessidade de que se conceda tratamento penal aos atos de improbidade  administrativa que importem inegável prejuízo ao erário, sugere-se aqui a incriminação da seguinte conduta: “Obter, direta ou indiretamente, de forma significativa e injustificada, aumento do patrimônio que exceda a renda legitimamente percebida durante o exercício da função pública que desempenha, ou para a qual foi selecionado, nomeado ou eleito”.

            Assinale-se que o delito de enriquecimento ilícito terá aplicação subsidiária em relação aos demais crimes contra a Administração Pública, visto que o aumento significativo e injustificado do patrimônio do funcionário é, na maioria das vezes, resultado da prática de algum desses delitos. Somente nas hipóteses em que reste comprovada a participação do funcionário em alguma dessas condutas delitivas, embora tenha sido demonstrado o incremento patrimonial incompatível com suas funções, é que ele incorrerá nas sanções reservadas ao enriquecimento ilícito.

Observe-se que a exigência de demonstração, por parte do funcionário público, da origem de seu patrimônio não implica inversão do ônus da prova no processo penal, pois a comunidade tem direito a exigir de seus funcionários a transparência de suas rendas. É bastante razoável a pretensão de que se possa contar com agentes públicos que procedam de tal maneira que o possam demonstrar a todos.

            Ainda, cumpre destacar que o enriquecimento ilícito poderá se configurar não apenas em relação àquelas retribuições que o funcionário recebe em razão de suas funções, como também aquelas não decorrentes dessa função mas igualmente incompatíveis com o exercício do seu cargo. Daí porque se sugere a redação “durante o exercício da função pública que desempenha” e não “em razão da função pública que desempenha”.

            Por fim, atente-se para a inclusão do funcionário que, embora ainda não esteja no pleno exercício de suas funções, tenha sido selecionado, nomeado ou eleito para seu desempenho. Essa previsão se ajusta ao disposto já no artigo 1º da Convenção. De todo modo, é importante dizer que não é qualquer incremento patrimonial do funcionário que deverá ser levado em conta para que se configure o enriquecimento ilícito, mas aquele excessivo, significativo, vultoso. Caso contrário, se se obrigasse os funcionários públicos a demonstrar, com absoluta exatidão, suas rendas, se lhes estaria impondo uma carga demasiado gravosa, uma preocupação obsessiva, que contrastaria com a serenidade exigida para o desempenho de suas funções.  

7.3. Sanções

            A pena sugerida para o delito de enriquecimento ilícito é de três a seis anos de reclusão, além da multa.

E também que o legislador inclua, como causa especial de aumento de pena do delito de enriquecimento ilícito, as situações em que o ganho patrimonial significativo e injustificado se dê em prejuízo de bens jurídicos de especial interesse do Estado, como, por exemplo, o patrimônio da Previdência Social.

            É relevante frisar ainda a necessidade de que sejam responsabilizados como co-autores ou partícipes do enriquecimento ilícito as interpostas pessoas (v.g., parentes e amigos do funcionário) que auxiliam na lavagem do dinheiro irregularmente obtido, tornando mais difícil a comprovação do incremento patrimonial e possibilitando que, ao depois, este seja facilmente recuperado pelo agente.  

8. Desenvolvimento progressivo. Artigo XI. Alínea “a”

8.1. Sujeito ativo

            Sujeito ativo do delito ora analisado é o funcionário público, cujo conceito consta do artigo 327 do Código Penal brasileiro. A esse conceito sugere-se sejam feitos os acréscimos descritos no item 1.1 do presente estudo.  

8.2. Tipo penal. Descrição da conduta

            Com o escopo de impulsionar o desenvolvimento e a harmonização das legislações nacionais e a consecução de seus objetivos, a Convenção determina que os Estados-Partes se comprometam a considerar a tipificação do “aproveitamento indevido, em benefício próprio ou de terceiros, por parte do funcionário público ou pessoa no exercício de funções públicas, de qualquer tipo de informação reservada ou privilegiada da qual tenha tomado conhecimento em razão ou por ocasião do desempenho da função pública”.

Trata-se de conduta não tipificada pela legislação brasileira. O Código Penal incrimina a violação de sigilo funcional, que consiste no ato de o funcionário público “revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação” (art.325). Sanciona com idêntica pena aquele que “permite ou facilita, mediante atribuição, fornecimento e empréstimo de senha ou qualquer outra forma, o acesso de pessoas não autorizadas a sistema de informações ou banco de dados da Administração Pública” (art.325, §1º, I) e quem “se utiliza, indevidamente, do acesso irrestrito” (art.325, §1º, II).

            A incriminação não deveria se restringir, porém, apenas à divulgação das informações cujo acesso é restrito e se dá mediante a utilização de senha, mas deveria abarcar o uso indevido de toda e qualquer informação havida por força do exercício funcional, pois em ambos os casos o funcionário rompe com o seu dever de lealdade, podendo causar dano à Administração Pública ou a terceira pessoa. Pense-se, por exemplo, em dados econômicos de grande valor para empresários ou operadores da bolsa, que poderiam ser por eles utilizados para obter vantagem desleal sobre seus competidores.

            Sugere-se, assim, que a descrição típica seja ampliada, passando a apresentar o caput do artigo 325 a seguinte redação: “Revelar, facilitar a revelação ou aproveitar-se indevidamente, em benefício próprio ou alheio, de informação de que tem ciência em razão ou por ocasião do exercício do cargo e que deva permanecer em segredo”. Observe-se que não se trata apenas daquela informação obtida pelo funcionário em razão do desempenho das atribuições de sua competência, mas também, tal como determina a Convenção, daqueles dados a que o funcionário tem acesso de forma ocasional, como por exemplo na hipótese de um funcionário de outra área do governo que tenha escutado comentário de um agente público do setor econômico.

As causas de aumento de pena, aplicáveis às hipóteses em que a informação divulgada é privilegiada, devem ser mantidas, pois implicam maior desvalor do resultado do delito. 

9. Desenvolvimento progressivo. Artigo XI. Alínea “b”

9.1. Sujeito ativo

            Sujeito ativo do delito ora analisado é o funcionário público, cujo conceito consta do artigo 327 do Código Penal brasileiro. A esse conceito sugere-se sejam feitos os acréscimos descritos no item 1.1 do presente estudo.  

9.2. Tipo penal. Descrição da conduta

            A Convenção orienta os Estados-Partes no sentido da tipificação do “uso ou aproveitamento indevido, em benefício próprio ou de terceiros, por parte de funcionário público ou pessoa que exerça funções públicas, de qualquer tipo de bens do Estado ou de empresa ou instituições em que este tenha parte e aos quais tenha tido acesso em razão ou por ocasião do desempenho da função”.

            A alínea descreve formas de conduta que caracterizam o delito de peculato, embora não tenham previsão perante a legislação nacional. O Código Penal brasileiro faz referência apenas ao fato de o funcionário “apropriar-se” de bens do Estado, excluindo a incriminação do mero “uso” ou “aproveitamento” desses valores (art.312). Sugere-se, portanto, a tipificação do peculato de uso, já incriminado pelo Decreto-lei 201/67 (art.1º, II), que trata dos crimes perpetrados por prefeitos e vereadores. Em respeito ao princípio da igualdade, que impõe tratamento isonômico a todos aqueles que se encontram em idêntica situação, não se pode tolerar que o uso indevido do patrimônio público dê lugar apenas à punição de alguns agentes públicos, restando os demais impunes. Demais disso, é inegável o desvalor da ação daquele que faz uso da coisa pública como se sua própria fosse, ainda que com o intuito de restituí-la em momento ulterior, razão pela qual considera-se oportuna a tipificação dessa conduta, nos moldes do que já ocorre em alguns países (v.g., Código Penal italiano, art.314.2).

            Assim, sugere-se que ao tipo legal do delito de peculato seja acrescentado um parágrafo dedicado à incriminação do peculato de uso, nos seguintes termos: “Fazer uso indevido, em proveito próprio ou alheio, de bens, rendas ou serviços públicos, de que tem posse em razão do cargo”. Por ser menor o desvalor da ação desse delito, se comparado ao crime de peculato descrito no caput do artigo 312 do Código Penal, sugere-se que a pena prevista para o peculato de uso seja de 1 (um) a 4 (quatro) anos de reclusão, além da multa.

            A lei penal brasileira refere-se a “dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel”, ao passo que a Convenção é mais ampla, ao mencionar “qualquer tipo de bens”. É prudente, destarte, que o legislador insira no tipo legal do delito de peculato os bens imóveis, igualmente passíveis de apropriação e, sobretudo, de uso ou aproveitamento pelo funcionário público que deles tenha posse em razão do cargo ocupado. Por outra parte, a referência a bens “públicos ou privados” açambarca de igual modo o patrimônio das pessoas jurídicas de Direito privado em que o Estado tenha parte (v.g., autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista), no mesmo sentido da Convenção.  

10. Desenvolvimento progressivo. Artigo XI. Alínea “c”

10.1. Sujeito ativo

            A Convenção faz menção, nessa alínea, a “autoridade pública”, e não simplesmente a “funcionário público”. Registre-se, porém, que perante a lei brasileira os conceitos são bastante semelhantes. A Lei 4.898/65, que disciplina o abuso de autoridade, considera autoridade “quem exerce cargo, emprego ou função pública, de natureza civil, ou militar, ainda que transitoriamente e sem remuneração” (art.5º). Assim, todo funcionário público é investido de autoridade, cujo abuso o sujeita à responsabilidade administrativa, civil e penal. No caso específico do delito em apreço, é importante destacar ainda que a autoridade pública em questão não figura como sujeito passivo, mas sim como co-autor ou sujeito ativo do crime. 

10.2. Tipo penal. Descrição da conduta

            A Convenção determina aqui a tipificação de “toda ação ou omissão realizada por qualquer pessoa que, por si mesma ou atuando como intermediária, procure a adoção, por parte da autoridade pública, de uma decisão em virtude da qual obtenha ilicitamente, para si ou para outrem, qualquer benefício ou proveito, haja ou não prejuízo para o patrimônio do Estado”.

            Esse dispositivo reforça a necessidade de punição da corrupção ativa. Todavia, estabelece uma inaceitável restrição do tipo legal desse delito, ao exigir que o agente procure a adoção, por parte da autoridade pública, de uma decisão em virtude da qual obtenha ilicitamente, para si ou para outrem, qualquer benefício ou proveito. Consoante já se expôs, para que se configure a corrupção ativa ou passiva é mister apenas que o agente do delito vise à prática, omissão ou adiamento de ato de ofício do funcionário público, ainda que o ato em si não implique a obtenção de vantagem indevida para ele ou para terceiro. O acolhimento da proposta da Convenção importaria, assim, grave restrição ao tipo penal insculpido no artigo 333 do Código Penal brasileiro, diminuindo consideravelmente as hipóteses de aplicação dessa norma, razão pela qual é aconselhável a manutenção da reserva feita pelo Brasil ao texto da Convenção, nesse particular aspecto. 

            Demais disso, o dispositivo não é claro ao empregar o vocábulo “ilicitamente”. Encontra-se ele ligado aos meios ou aos fins visados pelo particular? Em outras palavras, os benefícios obtidos devem ser ilícitos ou é o modo como procede o sujeito ativo que contraria o ordenamento jurídico? Se são os procedimentos empregados ilícitos, como parece indicar a figura, pode-se apontar como exemplo a hipótese de um contrato firmado em favor de uma empresa, por adjudicação direta da autoridade pública, quando na verdade se fazia necessária a abertura de procedimento licitatório. Essa interpretação, porém, dá margem a dúvidas: a incriminação do procedimento que outorga o benefício deveria recair mais sobre a conduta do funcionário público do que sobre o comportamento do particular e, não obstante isso, a figura aponta como sujeito ativo o particular que busca obter o benefício.

            O acolhimento de semelhante figura pelo ordenamento jurídico brasileiro implicaria violação do princípio da legalidade dos delitos e das penas, insculpido no artigo 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal, e no artigo 1º do Código Penal, particularmente no que diz respeito à imposição de taxatividade das leis penais.

            Por essas razões, aconselha-se que a ratificação da Convenção, pelo Brasil, seja feita com reserva a essa figura. 

11. Desenvolvimento progressivo. Artigo XI. Alínea “d”

11.1. Sujeito ativo

            Sujeito ativo do delito ora analisado é o funcionário público, cujo conceito consta do artigo 327 do Código Penal brasileiro. A esse conceito sugere-se sejam feitos os acréscimos descritos no item 1.1 do presente estudo.  

11.2. Tipo penal. Descrição da conduta

            Nessa alínea, a Convenção orienta os Estados-Partes à tipificação do “desvio de bens móveis ou imóveis, dinheiro ou valores pertencentes ao Estado para fins não relacionados com aqueles aos quais se destinava, a um organismo descentralizado ou a um particular, praticado, em benefício próprio ou de terceiros, por funcionários públicos que os tiverem recebido em razão de seu cargo, para administração, guarda ou por outro motivo”.

            O Código Penal brasileiro incrimina essa conduta em seu artigo 312, relativo ao delito de peculato, que abrange não apenas a “apropriação” mas também o “desvio”, pelo funcionário público, de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, em proveito próprio ou alheio. Valem aqui as mesmas considerações feitas por ocasião da análise da alínea “b” desse artigo: sugere-se que a lei penal brasileira faça menção também aos bens imóveis, que podem perfeitamente ser desviados pelo funcionário para fins outros que não o atendimento dos interesses gerais da comunidade.  

PARTE IV

PROPOSTAS DE ALTERAÇÃO LEGISLATIVA

 

            Tendo em vista a análise da legislação brasileira em matéria de corrupção, e após o estudo comparativo entre as diretrizes estabelecidas pela Convenção Interamericana contra a Corrupção e o ordenamento jurídico pátrio, propõem-se a alteração (devidamente sublinhada) da legislação vigente e a criação de tipos penais, nos termos do quadro seguinte:

Código Penal brasileiro

(Decreto-lei 2.848/40)

Propostas de alteração legislativa

Peculato

Art. 312. Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.

§1º. Aplica-se a mesma pena, se o funcionário público, embora não tendo a posse do dinheiro, valor ou bem, o subtrai, ou concorre para que seja subtraído, em proveito próprio ou alheio, valendo-se de facilidade que lhe proporciona a qualidade de funcionário.

Peculato culposo

§2º. Se o funcionário concorre culposamente para o crime de outrem:

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano.

§3º. No caso do parágrafo anterior, a reparação do dano, se precede a sentença irrecorrível, extingue a punibilidade; se lhe é posterior, reduz de metade a pena.

 

Peculato

Art. 312. Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel ou imóvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.

(...)

§1º. (SEM ALTERAÇÃO)

§2º. (SEM ALTERAÇÃO)

§3º. (SEM ALTERAÇÃO)

 

Peculato de uso

§4º. Fazer uso indevido, em proveito próprio ou alheio, de bens, rendas ou serviços públicos, de que tem posse em razão do cargo:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

 

Corrupção passiva

Art. 317. Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 8 (oito) anos, e multa.

§1º A pena é aumentada de um terço, se, em conseqüência da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou deixa de praticar qualquer ato de ofício ou o pratica infringindo dever funcional.

§2º. Se o funcionário pratica, deixa de praticar ou retarda ato de ofício, com infração de dever funcional, cedendo a pedido ou influência de outrem:

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.

 

Corrupção passiva

Art. 317. Solicitar ou receber, para si ou para outra pessoa física ou jurídica, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem:

Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.

§1º. (SEM ALTERAÇÃO)

§2º. (SEM ALTERAÇÃO)

 

Violação de sigilo funcional

Art.325. Revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação:

Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, ou multa, se o fato não constituir crime mais grave.

§1º. Nas mesmas penas desse artigo incorre quem:

I – permite ou facilita, mediante atribuição, fornecimento e empréstimo de senha ou qualquer outra forma, o acesso de pessoas não autorizadas a sistemas de informações ou banco de dados da Administração Pública.

II – se utiliza, indevidamente, do acesso restrito.

§2º. Se da ação ou omissão resulta dano à Administração Pública ou a outrem:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.

 

Violação de sigilo funcional

Art.325. Revelar, facilitar a revelação ou aproveitar-se indevidamente, em benefício próprio ou alheio, de informação de que tem ciência em razão ou por ocasião do exercício do cargo e que deva permanecer em segredo:

Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, ou multa, se o fato não constituir crime mais grave.

§1º. (SEM ALTERAÇÃO)

§2º. (SEM ALTERAÇÃO)

 

Funcionário público

Art. 327. Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.

§1º Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública.

§2º. A pena será aumentada da terça parte quando os autores dos crimes previstos neste Capítulo forem ocupantes de cargos em comissão ou de função de direção ou assessoramento de órgão da administração direta, sociedade de economia mista, empresa pública ou fundação instituída pelo poder público.

 

Funcionário público

Art. 327. Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública, ou foi selecionado ou nomeado para exercê-los.

§1º (SEM ALTERAÇÃO)

§2º. (SEM ALTERAÇÃO)

 

Corrupção ativa

Art. 333. Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 8 (oito) anos, e multa.

Parágrafo único. A pena é aumentada da metade, se o agente alega ou insinua que a vantagem é também destinada ao funcionário.

 

Corrupção ativa

Art. 333. Oferecer, prometer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Parágrafo único. (SEM ALTERAÇÃO)

 

Corrupção ativa em transação comercial internacional

 

Art.337-B. Prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a funcionário público estrangeiro, ou a terceira pessoa, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício relacionado a transação comercial internacional:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 8 (oito) anos.

 

Corrupção ativa em transação comercial internacional

 

Art.337-B. Prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a funcionário público estrangeiro, ou a terceira pessoa, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício relacionado a transação comercial ou econômica internacional:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 8 (oito) anos.

 

Tráfico de influência em transação comercial internacional

 

Art.337-C. Solicitar, exigir, cobrar ou obter, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, vantagem ou promessa de vantagem a pretexto de influir em ato praticado por funcionário público estrangeiro no exercício de suas funções, relacionado a transação comercial internacional:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

 

Tráfico de influência em transação comercial internacional

 

Art.337-C. Solicitar, exigir, cobrar ou obter, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, vantagem ou promessa de vantagem a pretexto de influir em ato praticado por funcionário público estrangeiro no exercício de suas funções, relacionado a transação comercial ou econômica internacional:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

 

Funcionário público estrangeiro

 

Art.337-D. Considera-se funcionário público estrangeiro, para os efeitos penais, quem, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública em entidades estatais ou em representações diplomáticas de país estrangeiro.

 

Funcionário público estrangeiro

 

Art.337-D. Considera-se funcionário público estrangeiro, para os efeitos penais, quem, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública, ou foi selecionado ou nomeado para exercê-los, em entidades estatais ou em representações diplomáticas de país estrangeiro.

 

Abuso de autoridade

(Lei 4.898/65)

Proposta de alteração legislativa

Nada consta.

 

Art.4º, alínea “j”. Praticar o funcionário público, no exercício de suas funções, ação ou omissão com o fim de obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita.

 

Enriquecimento ilícito

(Lei 8.429/92)

Proposta de alteração legislativa

Nada consta.

* A ser inserido no Código Penal, Titulo XI (Dos crimes contra a Administração Pública), Capítulo I (Dos crimes praticados por funcionário público contra a Administração em geral)

Art.312-A. Obter, direta ou indiretamente, de forma significativa e injustificada, aumento do patrimônio que exceda a renda legitimamente percebida durante o exercício da função pública que desempenha, ou para a qual foi selecionado, nomeado ou eleito.

 Pena – 2 (dois) a 8 (oito) anos de reclusão, e multa.

 

 

 

Este é o parecer, s.m.j.

Maringá, Brasil, 26 de agosto de 2002.

Prof. Dr. Luiz Regis Prado

Consultor


 
[1] A Convenção Interamericana contra  Corrupção (1996) foi aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo 152, de 25 de junho de 2002, e promulgada pelo Decreto 4.410, de 7 de outubro de 2002, com a nova redação dada pelo Decreto 4.534, de 19 de dezembro de 2002. Entrou em vigor em 24 de agosto de 2002.

[2] Cf. PASQUINO, Gianfranco. Corrupção. In: BOBBIO, Norberto et alii. Dicionário de Política, v.I.. Trad. Carmen Varriale, Gaetano lo Mônaco, João Ferreira, Luís Guerreiro Cacais e Renzo Dini. 5. ed. Brasília: Editora da UnB, 1993, p.291.

[3] Ibidem, p.292.
[4] Ibidem, p.293.

[5] Como bem se assinala, a corrupção “não é sinal característico de nenhum regime, de nenhuma forma de governo, mas decorrência natural do afrouxamento moral, da desordem e da degradação dos costumes, do sentimento de impunidade e da desenfreada cobiça por bens materiais, da preterição da ética e do exercício reiterado e persistente da virtude, substituindo-se pelas práticas consumistas e imediatistas tão caras ao hedonismo. Esta constatação é possível pelo cotejo da história, pelo estudo da trajetória do homem através dos tempos, donde se infere que a corrupção esteve presente por todo o tempo, contida e limitada, em alguns períodos, crescente e fortalecida em outros, incomensurável e avassaladora em outros tantos. Nenhuma outra fase do Brasil-República, decerto, terá suplantado a que se instalou a partir dos anos sessenta, chegando aos dias atuais, tal o nível de corrupção a que se atingiu e tamanha a indignação popular, face à postura cínica dos que nela se envolveram” (HABIB, Sérgio. Brasil: quinhentos anos de corrupção, Porto Alegre: Fabris, 1994, p. 26).

[6] Cf. SCHILLING, Flávia. Corrupção: ilegalidade intolerável?. São Paulo: IBCCrim, 1999., p.56.

[7] Cf. MAGADÁN DÍAZ, Marta; RIVAS GARCÍA, Jesús. Corrupción y fraude: economía de la transgresión. Madrid: Dykinson, 1999, p.20.

[8] Cf. SCHILLING, Flávia, op. cit., p.56.

[9] Cf. BUSTOS GISBERT, Rafael. La corrupción de los gobernantes: responsabilidad política y responsabilidad penal. In: La corrupción: aspectos jurídicos y económicos. Salamanca: Ratio Legis, 2000, p.33 e ss.

[10] Cf. BACIGALUPO, Enrique. Sobre la reforma de los delitos de funcionarios. In: Documentación jurídica, v.2, n.37-40, 1983, p.388.

[11] Cf. DELMAS-MARTY, Mireille; MANACORDA, Stefano. La corruption, un défi pour l’État de Droit et la société démocratique. Révue de Science Criminelle et de Droit Pénal Comparé, n.3, 1997, p.696-697.

[12] Cf. RODRÍGUEZ PUERTA, María José. El delito de cohecho: problemática jurídico-penal del soborno de funcionarios. Pamplona: Aranzadi, p.79.

[13] Cf. RIVERO ORTEGA, Ricardo. Instituciones jurídico-administrativas y prevención de la corrupción. In: La corrupción: aspectos jurídicos y económicos, cit., p.41.

[14] Cf. CARBAJO CASCÓN, Fernando. Aspectos jurídico-mercantiles de la corrupción. In: La corrupción: aspectos jurídicos y económicos, cit., p.55 e ss.

[15] Cf. GARCÍA VICENTE, José-Ramón. Corrupción y Derecho Privado: notas generales. In: La corrupción: aspectos jurídicos y económicos, cit., p.51.

[16] Cf. SUÁREZ MONTES, Rodrigo Fabio. Consideraciones político-criminales sobre el delito de trafico de influencias. In: Política Criminal y reforma penal (Homenaje a la memoria del Prof. Dr. D. Juan del Rosal), p.1092.

[17] Ibidem, p.1105.

[18] Cf. MANFRONI, Carlos. La Convención Interamericana contra la Corrupción. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 2001, p.17 e ss.

[19] Essa Convenção foi uma iniciativa tomada a partir da Recomendação Revisada sobre o Combate à Corrupção em Transações Comerciais Internacionais, adotada pelo Conselho da Organização para a Cooperação Econômica e o Desenvolvimento (OCDE), em 23 de maio de 1997, que reivindicou medidas efetivas para deter, prevenir e combater a corrupção de funcionários públicos estrangeiros ligados a transações comerciais internacionais, particularmente a imediata criminalização de tais atos de corrupção, de forma efetiva e coordenada, em conformidade com elementos gerais acordados naquela Recomendação e com os princípios jurisdicionais e jurídicos básicos de cada país.

[20] Assim também a Declaração das Nações Unidas, de 21 de fevereiro de 1997, sobre a Corrupção e os Subornos nas Transações Comerciais Internacionais e o Convênio do Conselho da Europa, de 27 de janeiro de 1999, de Direito Penal sobre Corrupção. Este último trata da matéria de forma minudente,, enumerando os atos de corrupção e de tráfico de influência (arts.2 a 12).

[21] Cf. MANFRONI, Carlos A. Soborno transnacional. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1998, p.75 e ss.

[22] Cf. PRADO, Luiz Regis. Responsabilidade penal da pessoa jurídica: fundamentos e implicações. In: Responsabilidade penal da pessoa jurídica (em defesa do princípio da pessoa jurídica). São Paulo: RT, 2001, p.104 e ss.

[23] Ibidem, p.227.
[24] Vide, a seguir, comentários ao artigo 312 do Código Penal brasileiro.

[25] É de notar que a Lei 8.429, de 2 de junho de 1992, estabelece uma série de sanções de caráter civil para os atos de improbidade administrativa que importem enriquecimento ilícito, que causem prejuízo ao erário ou que atentem contra os princípios da Administração Pública (art.12). Todavia, limitou-se a incriminar apenas a representação por ato de improbidade administrativa contra agente público ou terceiro beneficiário, quando o autor da denúncia o sabe inocente (art.19), delito que já foi devidamente acrescentado ao Código Penal em seu artigo 339, que trata da denunciação caluniosa, pela Lei 10.028, de 19 de outubro de 2000.

* Código Penal brasileiro em vigor (Decreto-lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940).

[26] Cf. CAETANO, Marcelo. Manual de Direito Administrativo. 10. ed. Coimbra: Almedina, 1997, p. 2-3.

[27] Cf. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 55. Para Marcelo Caetano, a Administração Pública, em sentido material, é “o conjunto de decisões e operações mediante as quais o Estado e outras entidades públicas procuram, dentro das orientações gerais traçadas pela Política e directamente ou mediante estímulo, coordenação e orientação das actividades privadas assegurar a satisfação regular das necessidades colectivas de segurança e de bem-estar dos indivíduos, obtendo e empregando racionalmente para esse efeito os recursos adequados” (op. cit., p. 05).

[28] Cf. BASTOS, Celso Ribeiro. Dicionário de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 2-3.

[29] Leciona-se que modernamente as funções fundamentais do Estado são divididas em legislativa, jurisdicional, administrativa e de governo, manifestadas, respectivamente, nas atividades de normação, gerais e abstratas; de tutela dos interesses públicos assumidos pelo Estado como próprios; de valoração do comportamento humano com fundamento no Direito e de estabelecimento de metas políticas (cf. PAGLIARO, Antonio e COSTA JR., Paulo José da. Dos crimes contra a Administração Pública. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 17).

[30] Sobre o tema, disserta-se que “o conceito de Administração Pública, atinente aos delitos compreendidos neste título, se recebe no sentido mais amplo, alcançando toda atividade do Estado e de outras entidades públicas. Portanto, com as normas referentes aos delitos contra a Administração Pública se tutela, não só a atividade administrativa em sentido estrito, técnico, mas também, em certo aspecto, a legislativa e a judicial. Com efeito, a lei penal prevê e reprime nesses títulos fatos que impedem ou perturbam o desenvolvimento regular da atividade do Estado e das outras entidades públicas” (MANZINI, V. Tratado de Derecho Penal, v. III, t. VIII. Trad. Santiago Sentís Melendo e Marino Ayerra Redín. Buenos Aires: Ediar, 1961, p. 4). No mesmo sentido MAGGIORE, Giuseppe. Derecho Penal, t. III. Bogotá: Temis, 1955, p. 127-128; SOLER, Sebastian. Derecho Penal argentino, t. V. Buenos Aires: TEA, 1953, p. 100.

[31] Quanto ao conceito de funcionário público, vide comentário ao artigo 327.

[32] Cf. OSÓRIO, Fábio Medina. Improbidade administrativa. 2. ed. Porto Alegre, 1998, p. 62. Vide, ainda, FERRACINI, Luiz Alberto. Improbidade administrativa. 2. ed. Campinas: Agá Juris, 1999, p. 24-25, e FIGUEIREDO, Marcelo. Probidade administrativa. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 20-21.

[33] A respeito de improbidade administrativa, afirma-se que “a formação dos quadros públicos do país, desde a colonização, denota o acesso ao serviço administrativo de pessoas, em geral, despreparadas e pouco afinadas com os interesses da coletividade. Da administração espoliativa exercida pelas Cortes Portuguesas passou-se com a Independência e a subseqüente proclamação da República, à administração servente dos interesses de grupos econômicos localizados. Num primeiro momento, na aristocracia rural, depois, na elite comercial e industrial. Nosso passado administrativo revela a carência de formação especializada e a ausência de instrumentos idôneos de fiscalização. Edificou-se um critério estrábico de discricionariedade e uma espécie de onipotência gerencial, visceralmente avessa aos princípios da representação política e da legalidade” (PAZZAGLINI FILHO, Marino. Improbidade administrativa. São Paulo: Atlas, 1996, p. 13). É preocupante, ainda, a observação feita de que a democracia, considerada a forma ideal de convivência social, tornou-se falsa e também desacreditada pela má conduta dos governantes e funcionários inadequados para essa forma de governo. Entende-se que tais governantes ineptos promovem a promiscuidade entre eles e seus governados, mas em proveito exclusivo dos detentores do poder, que almejam também o enriquecimento ilícito, a reeleição, sendo comuns nessa classe de governantes os desvios de conduta. E que uma das causas que mais influenciam negativamente no descrédito da democracia é a impunidade daqueles que ocupam tais cargos públicos, que não recebem sanções, seja por falha legislativa, seja por falha dos agentes encarregados da repressão criminal e do próprio Estado-juiz (cf. VILLADA, Jorge Luís. Delitos contra la función pública. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, s/d., p. 17-18).

[34] Os crimes aqui enfocados enquadram-se na categoria de crimes próprios, já que exigem do agente uma singular qualificação. No entanto, revestem-se de uma particularidade que os diferencia dos demais crimes próprios, porque não basta que o agente seja funcionário público, exigindo-se, outrossim, que esteja exercendo a função pública no momento da prática do ato delituoso.

[35] MAGALHÃES NORONHA, E. Direito Penal, v. IV. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 1981, p. 218.

[36] Dispunha o artigo 6.º do Código de Hamurabi: “Se um homem rouba qualquer coisa de propriedade de Deus ou do Palácio, será morto, e o que haja aceitado de suas mãos o produto do roubo, será também executado”. Determinava, ainda, o artigo 8.º: “Se um homem roubou um boi, ou uma ovelha, ou um asno, ou um porco, ou uma barca, sejam de Deus ou do Palácio, o restituirá trinta vezes mais; se são de um indivíduo qualquer, o restituirá dez vezes. Se o ladrão não tem com que restituir, será executado”. Destaquem-se, ainda, as seguintes normas do Código de Manu: “Art. 691. Que o rei faça perecer por diversos suplícios as pessoas que furtam seu tesouro (...); Art. 696. O rei deve fazer perecer sem hesitação aqueles que praticam uma brecha na casa do tesouro público, no arsenal ou em uma capela ou que furtam elefantes, cavalos ou carros pertencentes ao rei”.

[37] Cf. BALESTRA, Carlos Fontán. Tratado de Derecho Penal, t. VII. 2. ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, s/d., p. 308. Conta-se que Servio Tullio mandou gravar nas moedas metálicas a cabeça de um boi ou de um carneiro, sendo que “o furto daquelas moedas pertencentes ao erário público por quem tinha o dever de guardá-las gerou o crime de peculato” (TOURINHO, Demetrio Cyriaco Ferreira. Do peculato. 2. ed. Salvador: Progresso, 1954, p. 25).

[38] Cf. MOMMSEN, Teodoro. Derecho Penal romano. Trad. P. Dourado. Bogotá: Temis, 1991, p. 471-472.

[39] Segundo alguns, o peculato era classificado no Direito Penal romano em próprio e impróprio. O primeiro se manifestava pela apropriação por parte do funcionário dos fundos públicos (aerarium) que lhe haviam sido confiados. O segundo representava a apropriação praticada pelos particulares (VILLADA, Jorge Luís, op. cit., p. 391).

[40] Cf. MANZINI, Vincenzo, op. cit., p. 132; SOLER, Sebastian, op. cit., p. 189.

[41] Cf. MOMMSEN, Teodoro, op. cit., p. 473-474.

[42] Cf. VILLADA, Jorge Luis, op. cit., p. 391.

[43] Cf. TOURINHO, Demetrio Cyriaco Ferreira, op. cit., p. 29-30.

[44] Cf. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal, t.IX. Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 331.

[45] Cf. TOURINHO, Demetrio Cyriaco Ferreira, op. cit., p. 30.

[46] Continha a norma em epígrafe a seguinte redação: “Qualquer official nosso, ou pessoa outra, que alguma cousa por nós houver de receber, guardar, despender, ou arrendar nossas rendas, ou administrar por qualquer maneira, se alguma das ditas cousas furtar, ou maliciosamente levar, ou deixar levar, ou furtar a outrem, perca o dito Officio, e tudo o que de Nós tiver, e pague-nos anoveado a valia daquillo, que assi fòr furtado, ou levado, e mais haja a pena de ladrão, que por nossas Ordenações aos ladrões he ordenada, segundo fòr a quantidade da cousa. E as mesmas penas haverão lugar nos nossos Officiaes, conteúdos nesta Ordenação de qualquer Officio que seja, que derem ajuda, conselho, ou favòr aos Officiaes para fazer cada huma das ditas cousas”.

[47] O aludido artigo definia o peculato como sendo a conduta de “apropriar-se o empregado publico, consumir, extraviar ou consentir que outrem se aproprie, consuma ou extravie, em todo ou em parte, dinheiros ou effeitos publicos, quer tiver a seu cargo: Penas. No grao maximo-perda do emprego, dous annos e um mez de prisão com trabalho e multa de 20% da quantia ou valor dos effeitos apropriados, consumidos ou extraviados. No gráo médio-perda do emprego, dous annos e um mez de prisão com trabalho e multa de 12 ½% da quantia ou valor dos effeitos apropriados, consumidos ou extraviados. No gráo mínimo-perda do emprego, dous mezes de prisão com trabalho e multa de 5% da quantia ou valor dos effeitos apropriados, consumidos ou extraviados”.

[48] Dispunham as referidas normas incriminadoras: “Art. 221. Subtrahir, consumir ou extraviar dinheiro, documentos, effeitos, generos ou quaesquer bens pertencentes à fazenda publica, confiados à sua guarda ou administração, ou á de outrem sobre quem exercer fiscalisação em razão do officio. Consentir, por qualquer modo, que outrem se aproprie indevidamente desses mesmos bens, os extravie ou consuma em uso proprio ou alheio: Penas – de prizão cellular por seis mezes a quatro annos, perda do emprego e multa de cinco a 20% da quantia ou valor dos effeitos apropriados, extraviados ou consumidos. Art. 222. Emprestar dinheiros, ou effeitos publicos, ou fazer pagamento antecipado, não tendo para isso autorização: Penas – de suspensão do emprego por um mez a um anno e multa de cinco a 20% da quantia emprestada ou paga por antecipação. Art. 223. Nas penas dos artigos antecedentes, e mais na perda do interesse que deveriam perceber, incorrerão os que, tendo por qualquer título a seu cargo, ou em deposito, dinheiros ou effeitos publicos, praticarem qualquer dos crimes precedentemente mencionados”.

[49] Assevera-se, com acerto, que “o peculato, especialmente sobre dinheiros do Estado, foi sempre um crime que tem excitado graves clamores públicos de uma indignação geral. Os contribuintes não podem ver tranqüilos, que uma parte dos impostos que pagam sirva para enriquecer e nutrir vícios dos seus exatores ou gestores. Mas a história nos subministra muito poucos exemplos de castigo aos malversores. O seu poderio e influência lhes têm quase sempre assegurado a impunidade” (cf. TOURINHO, Demetrio Cyriaco Ferreira, op. cit., p. 32).

[50] O interesse protegido no que tange ao delito de peculato não é meramente patrimonial, alcançando principalmente a probidade. Preleciona-se que “não há necessidade de se invocar muitas palavras para explicar o quanto é grande, delicado e essencial esse interesse, não só de vital importância administrativa, mas também de um expressivo conteúdo ético-político. Com efeito, a probidade na Administração Pública constitui indício de progresso moral e de educação política dos povos” (MANZINI, V., op. cit., p. 135). Assinale-se também que quem pratica o delito de peculato trai a confiança pública e os deveres do seu cargo; desprestigia a administração e a função que desempenha; e, por fim, apropria-se de uma parte do patrimônio público, que pertence a toda a sociedade (cf. VILLADA, Jorge Luis, op. cit, p. 19 e 411). No dizer de Maggiore, a tutela jurídica no caso não “é tanto a defesa dos bens patrimoniais da Administração Pública, como o interesse do Estado pela probidade e fidelidade do funcionário público... o prejuízo próprio do peculato (ou da malversação), mais que material, é moral e político, pois se concretiza na ofensa ao dever de fidelidade do funcionário para com a Administração Pública” (op. cit., p. 161).

[51] Nélson Hungria refuta, com razão, a tese defendida por Manzini, Altavila e Maggiore, que entendem não ser a lesão patrimonial essencial à configuração do peculato. Para aquele é absolutamente indispensável para a concreção do peculato “o advento do dano patrimonial. O dano material, indeclinável no peculato, não é outra coisa que um desfalque patrimonial sofrido pela Administração Pública, seja como damnum emergens, seja como lucrum cessans, ou como ressarcimento a que estará obrigada, no caso de malversação” (op. cit., p. 343).

[52] Entende-se também que o autor desse delito pode ser também o “funcionário de fato” ou o funcionário incompetente, desde que não se trate de incompetência absoluta, caso em que o funcionário se converte em “usurpador” (cf. MAGGIORE, G., op. cit., p. 162).

[53] Malversação é a apropriação praticada pelo funcionário público, em proveito próprio ou de um terceiro, de dinheiro ou qualquer coisa móvel, não pertencente à Administração Pública, e que esteja em sua posse em razão do cargo que ocupa (cf. MAGGIORE, op. cit., p. 175).

[54] Cf. PAGLIARO, Antonio e COSTA JR.. Paulo José da, op. cit., p. 41.

[55] Não se pode olvidar a oportuna lição de que o peculato é “um dos mais graves delitos, não somente pelos prejuízos à Administração Pública, os quais podem decorrer da malversação do patrimônio público e de outros valores, mas igualmente pelo falseamento de que se mascara aquele que, com as vestes de funcionário, a fim de administrar ou conservar o patrimônio da entidade a que presta seus serviços, abusa iniquamente da facilidade que se lhe depara o encargo e da confiança que lhe é depositada” (cf. SILVEIRA, Valdemar César da. Peculato. Anais do I Congresso Nacional do Ministério Público, v. V. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1943, p. 134).

[56] Cf. HUNGRIA, Nélson, op. cit., p. 334. Observe-se que o Anteprojeto de Código Penal, Parte Especial, de 1999, inseriu a figura do peculato de uso no artigo 319, § 2.º, com a seguinte redação: “Utilizar o funcionário público, indevidamente, ou permitir que alguém o faça, dinheiro, valor, serviço ou qualquer outro bem móvel ou imóvel de que tenha posse em razão do cargo ou função, em proveito próprio ou alheio: Pena – reclusão, de dois a cinco anos, e multa”. Verifica-se pela exposição de motivos que a pretendida inovatio legis está sedimentada no evidente “sentido de resguardo da moralidade administrativa com inegável reflexo no patrimônio público”.

[57] O peculato de uso é incriminado pelo Código Penal italiano (art.314.2). A esse respeito, vide com maiores detalhes FIANDACA, Giovanni e MUSCO, Enzo. Diritto Penale, Parte Speciale. Bologna: Zanichelli Editore. v.I, p.193 e ss.

[58] Em tal hipótese, não se pode permitir que a Fazenda Pública fique privada do dinheiro arrecadado, efetuando-se despesas involuntariamente antes da data devida, já que a retirada do numerário por parte do funcionário, a título de compensação, “poderá trazer-lhe sério prejuízo econômico” (HUNGRIA, Nélson, op. cit., p. 337). É importante destacar ainda que “a lei faz menção expressa ao dinheiro, porque em contrario ao que succede no desvio commum deve-se considerar como excluída regularmente, em relação ao funccionario, a fungibilidade do dinheiro recebido em caracter official” (VON LISZT, Franz. Tratado de Direito Penal alemão, t. II. Trad. José Hygino Duarte Pereira. Rio de Janeiro: F. Briguiet & C., 1899, p. 504-505).

[59] MEIRELLES, Hely Lopes, op. cit., p. 348.

[60] O exemplo é de Nélson Hungria (op. cit., p. 337-338).

[61] Cf. PRADO, Luiz Regis. Código Penal anotado, 2. ed. São Paulo: RT, 1999, p. 931.

[62] Peculato de quantidade significa “a apropriação ou o desvio de coisas fungíveis quando o desfalque venha encoberto através de estorno de coisas fungíveis” (PAGLIARO, Antonio e COSTA JR., Paulo José da, op. cit., p. 50).

[63] Cf. MAGALHÃES NORONHA, E., op. cit., p. 227.

[64] A facilidade a que se refere o texto normativo diz respeito a qualquer circunstância de fato que propicie o êxito na concreção do furto, principalmente “o fácil ingresso ou acesso à repartição ou local onde se achava a coisa subtraída” (HUNGRIA, Nélson, op. cit., p. 348). Nunca é demais relembrar que “é comum ser dada aos funcionários, aos ‘colegas’, principalmente sendo da mesma repartição, facilidade que não tem pessoa estranha, como, por exemplo, a de entrada em lugar vedado ao público” (TEIXEIRA, Sílvio Martins. Tratado de Direito Penal, v. X. Rio de Janeiro: Noite, 1951, p. 33).

[65] Vide análise do crime de furto para a devida compreensão do núcleo subtrair.

[66] O exemplo é de Magalhães Noronha (op. cit., p. 228).

[67] Cf. FRAGOSO, H. C. Lições de Direito Penal, Parte Especial, v. IV. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 889.

[68] Assim, MIRABETE, Julio Fabbrini, Manual de Direito Penal, v. III. 13. ed. São Paulo: Atlas, 1999, p. 305.

[69] Cf. MAGALHÃES NORONHA, E., op. cit., p. 231. Observa com argúcia Nélson Hungria que enquanto o funcionário responde, no caso, por peculato culposo, aqueles que agiram dolosamente responderão por peculato próprio, peculato-furto, furto, roubo etc., o que demonstra que acolhe esse autor a tese da prática de peculato culposo no crime patrimonial perpetrado por particular contra bem público ou sob a guarda do Estado (op. cit., p. 350). O Anteprojeto da Parte Especial do Código Penal, de 1999, acolhe, no entanto, o entendimento de que o peculato culposo só se configura quando o agente dá causa, por culpa, à prática de uma das espécies de peculato doloso (art. 319).

[70] VILLADA, Jorge Luis, op. cit., p. 435. É oportuno ainda registrar que “autor culposo de peculato é o funcionário negligente, condição que não alcança o terceiro, pois este atua dolosamente e, não sendo um funcionário ou não estando em relação funcional com os bens, cometerá um delito contra a propriedade, que será um ou outro de acordo com as circunstâncias” (BALESTRA, Carlos Fontán, op. cit., p. 329).

[71] Explicita-se que “a ilicitude penal, sempre inconfundível e inflexível, depende, vitalmente, do fato de concorrer o funcionário público para o crime de outrem, em relação de causalidade material, além da relação de causalidade subjetiva (culpabilidade) mediando entre a ação ou omissão própria e o ‘iter’ alheio, para criar, pelo menos, condição à flagrância executiva e ao resultado” (LYRA, Roberto. Concorrência culposa para peculato alheio, Revista dos Tribunais. São Paulo: RT, v. 234, p. 55).

[72] Vide comentário ao artigo correspondente sobre a especificidade de tais cargos e funções de direção ou assessoramento.

[73] O Anteprojeto da Parte Especial do Código Penal, de 1999, manteve a redação do peculato próprio e impróprio, majorando, no entanto, a pena mínima de dois para três anos de reclusão.

[74] Cf. MAGALHÃES NORONHA, E. Direito Penal, v. IV, p. 294.

[75] O artigo 164 apresentava a seguinte redação: “Revelar algum segredo de que esteja instruido em razão do officio. Penas – No gráo máximo – dezoito meses de suspensão do emprego e multa correspondente á metade do tempo. No gráo médio – dez meses idem idem. No gráo minimo – dous mezes idem idem”.

[76] O artigo 192 continha o seguinte preceito: “Revelar qualquer pessoa o segredo de que tiver noticia, ou conhecimento, em razão de officio, emprego ou profissão. Penas – de prizão cellular por um a tres mezes e suspensão do officio, emprego ou profissão por seis mezes a um anno”.

[77] Cf. MAGALHÃES NORONHA, E., op. cit., p. 294.

[78] Cf. ALMEIDA, Fernando Henrique Mendes de. Dos crimes contra a Administração Pública. São Paulo: Saraiva, 1955, p. 138.

[79] Nunca é demais relembrar que o dever de lealdade, também conhecido como dever de fidelidade, é aquele que “exige de todo servidor a maior dedicação ao serviço e o integral respeito às leis e às instituições constitucionais, identificando-o com os superiores interesses do Estado. Tal dever impede que o servidor atue contra os fins e os objetivos legítimos da Administração...” (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro, p. 389).

[80] Cf. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho penal, v. III, t. VIII, p. 336.

[81] HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal, v. IX, p. 394. No mesmo sentido, MAGALHÃES NORONHA, E., op. cit., p. 296; PAGLIARO, Antonio e COSTA JR., Paulo José da. Dos crimes contra a Administração Pública, p. 174; FRAGOSO, H. C. Lições de Direito Penal, Parte Especial, v. IV, p. 940; STOCO, Rui. Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. 6. ed. São Paulo: RT, 1997, p. 3.644. Acrescenta, ainda, Noronha que até mesmo o funcionário colocado em disponibilidade pratica o crime em epígrafe, “pois, embora não exercendo as funções, continua a ser funcionário, fruindo das vantagens do cargo e sujeito às obrigações que ele lhe impõe” (op. cit., p. 296).

[82] Cf. FARIA, Bento de. Código Penal brasileiro comentado, v. VII. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1959, p. 121.

[83] Entende-se que não há crime funcional no caso em que o funcionário revela segredo conhecido não em razão de ofício.

[84] O acesso ao banco de dados ou a um sistema informatizado é marcado por privilégio pontuado, de forma que, quanto maior for o privilégio, maior será o alcance permitido ao usuário. Assim, “os privilégios de acesso podem variar para funcionários diferentes; dessa forma o presidente da companhia pode ver informações como receitas de vendas e demonstrações de lucros que não estão disponíveis à maioria dos funcionários” (NORTON, Peter. Introdução à informática. São Paulo: Makron, 1996, p. 82).

[85] Ensina-se que a maioria “dos sistemas corporativos e governamentais adota medidas de segurança para limitar o acesso aos seus sistemas. Um método comum é fornecer aos empregados autorizados códigos de identificação e senhas. Antes do logon do funcionário, ou antes de ele acessar aquivos de um computador, é preciso digitar um código de identificação de usuário, que identifica cada pessoa para o sistema. Normalmente, os funcionários também precisam digitar uma senha, que é um código secreto que verifica a identidade de cada pessoa. Se o código de identificação ou a senha de um usuário não coincide com os registros armazenados no software de segurança do computador, ele não terá permissão para entrar no sistema” (NORTON, Peter, op. cit., p. 81-82).

[86] O Anteprojeto da Parte Especial do Código Penal, de 1999, alterou a redação e a sanção atinentes ao crime de violação de sigilo funcional, instituindo ainda como causa de aumento de pena a revelação de segredo que afete o mercado financeiro ou operação a ele relativa, ou ainda o preço de mercadoria, bens ou serviços. Eis a redação do artigo 329:

“Revelar fato ou circunstância de que tenha ciência em razão do cargo ou função e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação: Pena – detenção, de um a quatro anos, e multa, se o fato não constitui crime mais grave. Aumento de pena: Parágrafo único. Aumenta-se a pena de metade se a revelação afeta o mercado financeiro ou operação a ele relativa, ou ainda o preço de mercadoria, bens ou serviços”.

[87] O nomen juris, artigo e parágrafo do mencionado artigo foram modificados pela Lei 9.127, de 16 de novembro de 1995. Eis a redação antiga do referido dispositivo legal: “Obter, para si ou para outrem, vantagem ou promessa de vantagem, a pretexto de influir em funcionário público no exercício da função. Pena – reclusão de um a cinco anos e multa. Parágrafo único. A pena é aumentada de um terço, se o agente alega ou insinua que a vantagem é também destinada ao funcionário”.

[88] Consta que Vetrônio Turin vangloriava-se de poder obter o que desejasse do imperador Alessandro e passou a mercadejar entre os cidadãos romanos tal sedizente influência junto ao imperador. Informado de tal conduta, Alessandro, no intuito de comprovar o fato, encarregou uma pessoa de sua confiança a se apresentar a Vetrônio, simulando necessitar de sua influência para obter algo importante do governo romano. Vetrônio aceitou a missão que lhe foi confiada e, após conseguir o solicitado, sem que tenha evidentemente conversado com o imperador, solicitou uma grande compensação financeira da pessoa encarregada pelo imperador de vigiá-lo. Vetrônio, então, foi condenado à pena capital. Foi amarrado num poste e sob o seu corpo foram adicionadas palha úmida e lenha verde, às quais se ateou fogo, a fim de que o condenado morresse por asfixia após ingerir a fumaça. Enquanto o condenado era executado, o arauto do imperador exclamava ao povo presente as seguintes palavras: Fumo punitir, qui fumum vendidit. Proveio daí a expressão venditio fumi, que denota a ação do agente que não passa de fumaça, jactância etc. (vide MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Penal, v. III, t. VIII, p. 247-248).

[89] O crime em exame é “um dos mais vis e odiosos delitos, não só porque promove o descrédito dos órgãos públicos em geral, como também ofende insidiosamente a honra dos homens honestos, que permanecem alheios, pelo menos durante um certo tempo, da torpe especulação que o velhaco fez, valendo-se de seu nome” (MANZINI, Vincenzo, op. cit., p. 249-250). Vide, a respeito do tema: MAGGIORE, Giuseppe. Derecho Penal, v. III, p. 279-280; RANIERI, Silvio. Manual de Derecho Penal, Parte Especial, t. III. Trad. Jorge Guerrero. Bogotá: Temis, 1975, p. 382; SIQUEIRA, Galdino. Tratado de Direito Penal, Parte Especial, t. IV. Rio de Janeiro: José Konfino, 1947, p. 648-649.

[90] Cf. FRAGOSO, H. C., Lições de Direito Penal, Parte Especial, v. IV, p. 325.

[91] MAGALHÃES NORONHA, E., op. cit., p. 326.

[92] Cf. MAGGIORE, Giuseppe, op. cit., p. 280. O delito em análise expressa “uma species de estelionato (consumado ou tentado), trasladada, em razão do detrimento que acarreta ou pode acarretar à dignidade ou insuspeitabilidade dos funcionários do Estado, do elenco dos crimes contra o patrimônio, para o quadro dos crimes contra a Administração Pública” (HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal, v. IX, p. 425).

[93] O agente, em vez de dizer o nome do funcionário, pode afirmar falsamente ao iludido que é amigo de um agente público que pode prestar-lhe o favor almejado.

[94] Cf. MANZINI, Vincenzo, op. cit., p. 254. Vide, ainda, GUSMÃO, Sady Cardoso de. Exploração de prestígio. Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro, v. XXII. Rio de Janeiro: Borsói, s/d., p. 21; MAGALHÃES NORONHA, E., op. cit., p. 326.

[95] O Anteprojeto da Parte Especial do Código Penal, de 1999, inseriu o tráfico de influência no artigo 337, com a seguinte redação: “Solicitar ou obter, para si ou para outrem, vantagem ou promessa de vantagem, a pretexto de influir em funcionário público no exercício da função. Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa”.

[96] Redação dada pela Lei 9.983, de 14 de julho de 2000.

[97] Funcionário público, em sentido amplo, “é todo aquele que, mesmo em caráter transitório, exerce cargo, emprego ou função pública. Em sentido estrito, funcionário público é toda pessoa física titularizada que, em caráter permanente, exerce cargo público, criado por lei” (CRETELLA JR., José. Curso de Direito Administrativo. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 421). Vide, ainda, sobre a noção ampliativa de funcionário público, MENEGALE, J. Guimarães. Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro, v. XXIII. Rio de Janeiro: Borsói, s/d., p. 190.

[98] Doutrinariamente, cargo público pode ser definido como o “lugar instituído na organização do serviço público, com denominação própria, atribuições específicas e estipêndio correspondente, para ser provido e exercido por um titular, na forma estabelecida em lei” (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro, p. 356).

[99] Cf. VASCONCELOS, Edson Aguiar de. Direito Administrativo brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 166; FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 384. Alude-se, contudo, que, com a possibilidade de a Administração contratar servidores sob o regime da legislação trabalhista, a expressão emprego público “passou a ser utilizada, paralelamente a cargo público, também para designar uma unidade de atribuições, distinguindo-se uma da outra pelo tipo de vínculo que liga o servidor ao Estado; o ocupante de emprego público tem um vínculo contratual, sob a regência da CLT, enquanto o ocupante de cargo público tem um vínculo estatutário, regido pelo Estatuto dos Funcionário Públicos...” (DI PIETRO. Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 1997, p. 420).

[100] MUKAI, Toshio. Direito Administrativo sistemático. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 166. Evidentemente, as noções de cargo e função se distinguem, já que “todo cargo tem função, mas pode haver função sem cargo. As funções do cargo são definitivas; as funções autônomas são, por índole, provisórias, dada a transitoriedade do serviço a que visam atender” (MEIRELLES, Hely Lopes, op. cit., p. 356).

[101] Maria Sylvia Di Pietro enfoca ainda como função as atribuições ínsitas aos “servidores contratados temporariamente com base no artigo 37, IX, para as quais não se exige, necessariamente, concurso público, porque, às vezes, a própria urgência da contratação é incompatível com a demora do procedimento” (op. cit., p. 422).

[102] A concessão vem a ser “delegação contratual e, modernamente, legal; a permissão e a autorização constituem delegações por ato unilateral da Administração; aquela com maior formalidade e estabilidade para o serviço; esta com mais simplicidade e precariedade na execução” (MEIRELLES, Hely Lopes, op. cit., p. 339).

[103] Define-se a Administração indireta como sendo aquela que “realiza serviços descentralizados, por intermédio das pessoas que a integram, as quais são instituídas pelo Estado para esse fim. Tais pessoas são as autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações públicas” (VASCONCELOS, Edson Aguiar de, op. cit., p. 200).

[104] A descentralização consiste “na distribuição de competências de uma para outra pessoa, física ou jurídica”, diferenciando-se da desconcentração por ser esta “uma distribuição de competências dentro da mesma pessoa jurídica” (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, op. cit., p. 336).

[105] MUKAI, Toshio, op. cit., p. 31.

[106] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, op. cit., p. 360.

[107] Na abordagem do tema enfocado, “as expressões: entidades paraestatais ou semi-estatais e autarquias administrativas se sinonimizam...” (SILVEIRA, Valdemar César da. Anais do I Congresso Nacional do Ministério Público, v. 5, p. 333). E ainda, “em face do código, funcionário público não é apenas o que serve à administração direta do Estado, senão também o empregado de entidades paraestatais (autarquias que gravitam na órbita da União, Estados-membros ou Municípios)” (HUNGRIA, Nélson, Comentários ao Código Penal, v. IX, p. 400).

[108] Assevera-se, aliás, que “o que se passou, entretanto, no Direito brasileiro, é que foram criadas inúmeras pessoas designadas como fundações, com atribuições nitidamente públicas e que, sob este aspecto, em nada se distinguiam das autarquias” (MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 83).

[109] MEIRELLES, Hely Lopes, op. cit., p. 312. Assinale-se que os entes paraestatais se diferenciam das autarquias, já que, enquanto estas desenvolvem atividades públicas típicas, aqueles “prestam-se a executar atividades impróprias do Poder Público, mas de utilidade pública, de interesse da coletividade, e, por isso, fomentadas pelo Estado, que autoriza a criação de pessoas jurídicas privadas para realizá-las por outorga ou delegação...” (MEIRELLES, Hely Lopes, idem, ibidem.). Agregue-se, por oportuno, que paraestatal é uma palavra híbrida que congrega a partícula grega para e o adjetivo estatal, oriundo do termo latino status. Tal neologismo foi usado pelo Direito italiano, por ocasião do fascismo (enti paraestatali), expressando em seu conjunto o ente que se situa “ao lado do Estado, lado a lado ao Estado, paralelo ao Estado” (CRETELLA JR., José. op. cit., p. 40).

[110] Cf. VASCONCELOS, Edson Aguiar de, op. cit., p. 200.

[111] Cf. MEIRELLES, Hely Lopes, op. cit., p. 331.

[112] Destaque-se que as entidades de apoio são pessoas jurídicas de Direito privado, sem fins lucrativos, “instituídas por servidores públicos, porém em nome próprio, sob a formação de fundação, associação ou cooperativa, para a prestação, em caráter privado, de serviços sociais não exclusivos do Estado, mantendo vínculo jurídico com entidades da administração direta ou indireta, em regra por meio de convênio”, enquanto que as organizações sociais “são pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, instituídas por iniciativa de particulares, para desempenhar serviços sociais não exclusivos do Estado, com incentivo e fiscalização pelo Poder Público, mediante vínculo jurídico instituído por meio de contrato de gestão”. As organizações da sociedade civil de interesse público, de constituição semelhante às organizações sociais, “são pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, instituídas por iniciativa de particulares, para desempenhar serviços sociais não exclusivos do Estado com incentivo e fiscalização pelo Poder Público, mediante vínculo jurídico instituído por meio de termo de parceria” (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, op. cit., p. 401-407).

[113] Cf. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, op. cit., p. 398.

[114] Leciona-se, com percuciência, que “a equiparação é tão-somente para os efeitos penais concernentes aos crimes em que o funcionário é sujeito ativo (isto é, somente em relação aos crimes chamados funcionais). Se assim não fosse, o art. 327 teria de figurar como disposição geral do Tít. XI, e não apenas do respectivo Cap. I)” (HUNGRIA, Nélson, op. cit., p. 401). No mesmo sentido, MAGALHÃES NORONHA, E., Direito Penal, v. IV, p. 218; DELMANTO, Celso. Código Penal comentado. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 578; PEREIRA, Paulo Cyrillo. Funcionário público: titularidade passiva nos crimes contra a Administração Pública. Revista dos Tribunais. São Paulo: RT, v. 665, 1991, p. 259. Inconvincente, MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal, v. III, p. 298.

[115] A norma em epígrafe deve ser interpretada restritivamente quanto ao alcance do termo funcionário público, já que “a lei prevê condutas certas e determinadas. Matar alguém sempre foi matar alguém e sempre será. A expressão ‘função pública’ absorverá, se mal interpretada, sujeitos não cogitados ao tempo da feitura da lei. O alargamento do tipo facilitará o surgimento de uma comunidade, dentro da qual todos – ou quase todos – exerceriam as atribuições aqui comentadas, com repercussão na gravidade da pena imposta (...). A crescente interferência do Estado na área reservada ao particular merece a resistência do jurista consciente. O risco certo de se admitir o gigantismo é a própria deformação do direito. Este, olhado globalmente, é um conjunto de normas que infelizmente se deformam de acordo com o momento político. Reside nisto, por certo, a maior parte da responsabilidade no campo prático. A interpretação restritiva do tipo, com o conseqüente favorecimento dos réus, é regra geral que no caso tem específica indicação” (FERNANDES, Ana Maria Babette Bajer. Conceito de funcionário público no Direito Penal. Justitia. São Paulo: Procuradoria-Geral de Justiça/Associação Paulista do Ministério Público, v. 98, 1977, p. 34-35).

[116] O inciso I do artigo 15 da Lei 8.212/91 define empresa como “a firma individual ou sociedade que assume o risco de atividade econômica urbana ou rural, com fins lucrativos ou não, bem como os órgãos e entidades da Administração Pública direta, indireta e fundacional”.

[117] Art. 9º. Constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento ilícito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no art.1º desta Lei, e notadamente: I – receber, para si ou para outrem, dinheiro, bem móvel ou imóvel, ou qualquer outra vantagem econômica, direta ou indireta, a título de comissão, percentagem, gratificação ou presente de quem tenha interesse, direto ou indireto, que possa ser atingido ou amparado por ação ou omissão decorrente das atribuições do agente público; II – perceber vantagem econômica, direta ou indireta, para facilitar a aquisição, permuta ou locação de bem móvel ou imóvel, ou a contratação de serviços pelas entidades referidas no art. 1º por preço superior ao valor de mercado; III – perceber vantagem econômica, direta ou indireta, para facilitar a alienação, permuta ou locação de bem público ou o fornecimento de serviço por ente estatal por preço inferior ao valor de mercado; IV – utilizar, em obra ou serviço particular, veículos, máquinas, equipamentos ou material de qualquer natureza, de propriedade ou à disposição de qualquer das entidades mencionadas no art. 1º desta Lei, bem como o trabalho de servidores públicos, empregados ou terceiros contratados por essas entidades; V – receber vantagem econômica de qualquer natureza, direta ou indireta, para tolerar a exploração ou a prática de jogos de azar, de lenocínio, de narcotráfico, de contrabando, de usura ou de qualquer outra atividade ilícita, ou aceitar promessa de tal vantagem; VI – receber vantagem econômica de qualquer natureza, direta ou indireta, para fazer declaração falsa sobre medição ou avaliação em obras públicas ou qualquer outro serviço, ou sobre quantidade, peso, medida, qualidade ou característica de mercadorias ou bens fornecidos a qualquer das entidades mencionadas no art. 1º desta Lei; VII – adquirir, para si ou para outrem, no exercício de mandato, cargo, emprego ou função pública, bens de qualquer natureza cujo valor seja desproporcional à evolução do patrimônio ou à renda do agente público; VIII – aceitar emprego, comissão ou exercer atividade de consultoria ou assessoramento para pessoa física ou jurídica que tenha interesse suscetível de ser atingido, ou amparado por ação ou omissão decorrente das atribuições do agente público, durante a atividade; IX – perceber vantagem econômica para intermediar a liberação ou aplicação de verba pública de qualquer natureza; X – receber vantagem econômica de qualquer natureza, direta ou indireta, para omitir ato de ofício, providência ou declaração a que esteja obrigado; XI – incorporar, por qualquer forma, ao seu patrimônio bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no art. 1º desta Lei; XII – usar, em proveito próprio, bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no art. 1º desta Lei.

[118] Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta Lei, e notadamente: I – facilitar ou concorrer por qualquer forma para a incorporação ao patrimônio particular, de pessoa física ou jurídica, de bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no art. 1º desta Lei; II – permitir ou concorrer para que pessoa física ou jurídica privada utilize bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no art. 1º desta Lei, sem a observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie; III – doar à pessoa física ou jurídica bem como ao ente despersonalizado, ainda que de fins educativos ou assistenciais, bens, rendas, verbas ou valores do patrimônio de qualquer das entidades mencionadas no art. 1º desta Lei, sem observância das formalidades legais e regulamentares aplicáveis à espécie; IV – permitir ou facilitar a alienação, permuta ou locação de bem integrante do patrimônio de qualquer das entidades referidas no art. 1º desta Lei, ou ainda a prestação de serviço por parte delas, por preço inferior ao de mercado; V – permitir ou facilitar a aquisição, permuta ou locação de bem ou serviço por preço superior ao de mercado; VI – realizar operação financeira sem observância das normas legais e regulamentares ou aceitar garantia insuficiente ou inidônea; VII – conceder benefício administrativo ou fiscal sem a observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie; VIII – frustrar a licitude de processo licitatório ou dispensá-lo indevidamente; IX – ordenar ou permitir a realização de despesas não autorizadas em lei ou regulamento; X – agir negligentemente na arrecadação de tributo ou renda, bem como no que diz respeito à conservação do patrimônio público; XI – liberar verba pública sem a estrita observância das normas pertinentes ou influir de qualquer forma para a sua aplicação irregular; XII – permitir, facilitar ou concorrer para que terceiro se enriqueça ilicitamente; XIII – permitir que se utilize, em obra ou serviço particular, veículos, máquinas, equipamentos ou material de qualquer natureza, de propriedade ou à disposição de qualquer das entidades mencionadas no art. 1º desta Lei, bem como o trabalho de servidor público, empregados ou terceiros contratados por essas entidades.

[119] Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições, e notadamente: I – praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto na regra de competência; II – retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício; III – revelar fato ou circunstância de que tem ciência em razão das atribuições e que deva permanecer em segredo; IV – negar publicidade aos atos oficiais; V – frustrar a licitude de concurso público; VI – deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo; VII – revelar ou permitir que chegue ao conhecimento de terceiro, antes da respectiva divulgação oficial, teor de medida política ou econômica capaz de afetar o preço de mercadoria, bem ou serviço.

[120] Art. 12. Independentemente das sanções penais, civis e administrativas, previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações: I – na hipótese do art. 9º, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, ressarcimento integral do dano, quando houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de 8 (oito) a 10 (dez) anos, pagamento de multa civil de até 3 (três) vezes o valor do acréscimo patrimonial e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de 10 (dez) anos; II – na hipótese do art. 10, ressarcimento integral do dano, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, se concorrer esta circunstância, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de 5 (cinco) a 8 ( oito) anos, pagamento de multa civil de até 2 (duas) vezes o valor do dano e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefício ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de 5 (cinco) anos; III – na hipótese do art. 11, ressarcimento integral do dano, se houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de 3 (três) a 5 (cinco) anos, pagamento de multa civil de até 100 (cem) vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de 3 (três) anos. Parágrafo único. Na fixação das penas previstas nesta Lei o juiz levará em conta a extensão do dano causado, assim como proveito patrimonial obtido pelo agente.

* Código Penal brasileiro (Decreto-lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940).

[121] Assim, na Bíblia, “estabelecerás juízes e magistrados em todas as cidades que o Senhor, teu Deus, te tiver dado, em cada uma das tuas tribos, para que julguem o povo com eqüidade. Não farás vergar a Justiça, não farás distinção de pessoas e não aceitarás presentes corruptores, pois a corrupção cega os olhos dos sábios e perverte a causa do inocente” (Dt. 16, 18-19).

[122] Cf. OLIVEIRA, Edmundo. Crimes de corrupção. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 17-18.

[123] Cf. RODRÍGUEZ DEVESA, J. M. Cohecho. In: Nueva Enciclopedia Jurídica, t.IV, p.354-355.

[124] Cf. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal, v. IX, p. 365.

[125] A corrupção dos juízes denominava-se baractaria, para expressar “o barato que se faz do dinheiro com a justiça” (FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal, Parte Especial, v. IV, p. 909).

[126] Eis a redação da aludida norma: “Defendemos a todos os Dezembargadores e Julgadores, e a quaesquer outros Officiaes, assi da Justiça, como da nossa Fazenda, e bem assi da nossa Caza, de qualquer qualidade que sejão, e aos da Governança das Cidades, Villas e lugares, e outros quaesquer, que não recebão para si, nem para filhos seus nem pessoas, que debaixo de seu poder e governança têm, dadivas algumas, nem presentes de pessoa alguma que seja, postoque com elles, não traga requerimento de despacho algum. E quem o contrario fizer, perderá qualquer Officio, que tiver, e mais pagará vinte por hum do que receber, a metade para quem o accusar, e a outra para nossa Camara... Não tolhemos porém, que possão receber tudo o que lhes quizerem dar seus descendentes, ou ascendentes, e outros parentes transversaes até o segundo gráo inclusive, contado segundo Direito Canonico. E assi poderão receber pão, vinho, carnes, fructas, e outras cousas e comer, que entre os parentes e amigos se costumão dar, e receber das pessoas, que com elles tiverem razão de parentesco, ou cunhadio até o quarto gráo, ou que tiverem com elles tão streita amizade, ou outra razão, por onde com direito não possão ser Juizes de suas causas. Nem isso mesmo nenhum dos sobreditos Officiaes poderá ser Feitos de outros Officiaes seus Superiores, nem para elles comprar nem vender-lhes, nem emprestar-lhes cousa alguma do seu. E os Officiaes, que assi derem, venderem, ou lhes comprarem, venderem ou emprestarem cousa alguma, perderão suas fazendas, ametade para quem os accusar, e a outra para nossa Camera. E perderão os Officios, Carregos, ordenados, e mantimentos, que com elles tiverem, e serão degradados cinco annos para Africa, e não poderão mais haver os taes Officios, ou Carregos, que assi tiverão. E as ditas fazendas e Officios, que assi se hão de perder, e dos que as ditas cousas derão, venderão, comprarão, emprestarão, ou negociarão para outros Officiaes, havemos por bem, que se possão demandar até dez annos sómente. 1. E trazendo feito perante os ditos Julgadores e Dezembargadores, e mais Officiaes acima tidos, ou requerendo desembargo, ou despacho, e recebendo qualquer cousa daquelle, que assi trouxer, ou requerer, ou de outrem, que lho der por elle, sendo cada hum de todos os sobreditos officiaes, Official, que tenha Officio de julgar, perca para a nossa Coroa todos seus bens, e o Officio, que de Nós tiver. E se a peita passar de cruzado, ou sua valia, além das sobreditas penas será degradado para todo o sempre para o Brazil. E sendo de cruzado, e dahi para baixo, será degradado cinco annos para Africa. E sendo a peita de valia de dous marcos de prata, ou dahi para cima, além do perdimento da fazenda, morrerá morte natural. 2. E sendo o que recebeo a peita, Official, que não tenha Officio de julgar, e a receber, trazendo perante elle, ou requerendo qualquer despacho, além de perder o Officio, pagará trinta por hum do que receber, ametade para quem o accusar, e a outra para nossa Camera. 3. E tendo cada hum de todos os sobreditos aceitada a promessa de alguma cousa, não a tendo recebida, perderá o officio, e pagará o tresdobro da promessa, que tiver aceitada, para a Coroa de nossos Reinos... 8. E mandamos, que nenhum Official de Justiça, que tenha Officio de julgar, nem Meirinho da Corte, nem Alcaides de Lisboa recebão, nem aceitem de alguma pessoa de nossos Reinos, assi Ecclesiastica, como Secular, Igrejas, Prazos graciosos, rendas, tença, de qualquer sorte e qualidade que sejão, Ecclesiasticas, nem Seculares, nem para filho seu, nem para pessoa, que de baixo de seu poder e governança stê. E os que o contrario fizerem, perderão os Officios, que tiverem de Nós, e mais suas fazendas, ametade para quem os accusar, e a outra para nossa Camera. E a sobredita defesa, havemos por bem que haja lugar, e se guarde inteiramente em todos os Officiaes de nossa Caza, Camera e Fazenda, em nossa Corte, a fóra della sob as ditas penas... 10. E isso mesmo mandamos, que todos os Officiaes da Justiça, que tem Officio de julgar, não possão rogar a pessoa alguma, que quite, ou remitta, ou largue alguma cousa a outra pessoa. E fazendo o contrario, incorrerá o Official, que assi rogar, nas penas, em que incorrèra, se recebèra delle tudo aquillo, porque rogava, posto que a parte rogada não quizesse fazer o rogo”.

[127] O artigo 130, que tratava da peita, continha a seguinte redação: “Receber dinheiro ou outro algum donativo, ou aceitar promessas, directa ou indirectamente, para praticar ou deixar de praticar algum acto de officio contra ou segundo a lei: Penas. No gráo maximo – perda do emprego com inhabilidade para outro qualquer, multa igual ao tresdobro da peita, e nove mezes de prisão. No gráo médio – perda do emprego com inhabilidade para outro qualquer, multa igual ao tresdobro da peita, e seis mezes de prisão. No gráo minimo – perda do emprego com inhabilidade para outro qualquer, multa igual ao tresdobro da peita, e tres mezes de prisão. A pena de prisão não terá lugar quando o acto, em vista do qual se recebeu o aceitou a peita, se não tiver effectuado”. O artigo 131 ditava: “Nas mesmas penas incorrerá o juiz de direito, de facto ou arbitro, que por peita der sentença, posto que justo seja. Si a sentença fôr injusta, a prisão será: No gráo maximo – dous annos. No gráo médio – quinze mezes. No gráo minimo – seis mezes. Si fôr criminal condemnatoria, soffrerá o peitado a mesma pena que tiver imposto ao que condemnára, menos a de morte, quando o condemnado a não tiver soffrido, caso em que se imporá ao réo, a de prisão perpetua. Em todos estes casos a sentença dada por peita será nulla” (idem, ibidem). O suborno estava disciplinado no artigo 133, com a seguinte redação: “Deixar-se corromper, por influencia ou peditorio de alguem, para obrar o que não dever, ou deixar de obrar o que dever. Decidir-se por dadiva ou promessa a eleger ou propôr alguem para algum emprego, ainda que para elle tenha as qualidades requeridas: Penas. As mesmas estabelecidas para os casos da peita”. O artigo 134 determinava que se aplicassem ao juiz subornado as disposições contidas no artigo 131.

[128] Eis a redação do artigo 214: “Receber para si, ou para outrem, directamente ou por interposta pessoa, em dinheiro ou outra utilidade, retribuição que não seja devida; aceitar, directa, ou indirectamente, promessa, dadiva ou recompensa para praticar ou deixar de praticar um acto do officio, ou cargo, embora de conformidade com a lei; Exigir, directa ou indirectamente, para si ou para outrem, ou consentir que outrem exija, recompensa ou gratificação por algum pagamento que tiver de fazer em razão do officio ou commissão de que for encarregado (modalidade de concussão – grifou-se) : Penas – de prizão celluar por seis mezes a um anno e perda do emprego, com inhabilitação para outro, alem da multa igual ao triplo da somma, ou utilidade recebida”. Na seqüência, dispunha o artigo 215: “Deixar-se corromper por influencia, ou suggestão de alguem, para retardar, omittir, praticar, ou deixar de praticar um acto contra os deveres do officio ou cargo; para prover ou propor para emprego publico alguem, ainda que tenha os requisitos legaes : Penas – de prizão cellular por seis mezes a um anno, e perda do emprego com inhabilitação para outro”. O artigo 216, por sua vez, referia-se à corrupção dos magistrados, ditando: “Nas mesmas penas incorrerá o juiz de direito, de facto ou arbitro, que, por peita ou suborno, dér sentença, ainda que justa. § 1. Si a sentença fôr criminal condemnatoria, mas injusta, soffrerá o peitado ou subornado a mesma pena que tiver imposto ao que condemnára, além da perda do emprego, e multa”. O artigo 218, complementando os demais, dispunha: “São nulos os actos em que intervier peita ou suborno”.

[129] Cf. FRAGOSO, H. C., op. cit., p. 911.

[130] Cf. MUÑOZ CONDE, Francisco. Derecho Penal, Parte Especial. 12. ed. Valecia: Tirant lo Blanch, 1999, p. 957. Nesse sentido, sustenta-se que “deve se considerar a corrupção como um delito unilateral, tendo em vista que em regra nos encontramos nessa esfera típica diante de dois delitos distintos: um cometido pelo funcionário e outro realizado pelo particular, ambos ordinariamente designados com as respectivas expressões terminológicas de corrupção passiva e corrupção ativa, cada uma das quais executada em separado conforme sua própria dinâmica típica” (CASAS BARQUERO, Enrique. Observaciones técnico-jurídicas sobre la incriminación del cohecho en el Código Penal español. Documentación jurídica, n.19, 1978, p.868).

[131] A Convenção Interamericana contra a Corrupção, redigida em Caracas em 1996, define o seguintes atos de corrupção em seu artigo VI: “a) a solicitação ou aceitação, direta ou indiretamente, por um funcionário público ou uma pessoa que exerça funções públicas, de qualquer objeto de valor pecuniário ou outros benefícios, como presentes, favores, promessas ou vantagens para si mesmo ou para outra pessoa ou entidade em troca da realização ou omissão de qualquer ato no exercício de suas funções públicas; b) o oferecimento ou a promessa, direta ou indiretamente, a um funcionário público ou a uma pessoa que exerça funções públicas, de qualquer ato ou omissão no exercício de suas funções, com o fim de obter ilicitamente benefício para si mesmo ou para um terceiro; c) a realização por parte de um funcionário público ou pessoa que exerça funções públicas de qualquer ato ou omissão no exercício de suas funções, com o fim de obter ilicitamente benefícios para si mesmo ou para um terceiro; d) o aproveitamento doloso ou ocultações de bens provenientes de quaisquer dos atos a que se referem o presente artigo; e) a participação como seu autor, co-autor, instigador, cúmplice ou em qualquer outra forma na realização de qualquer dos atos a que se refere o presente artigo” (VILLADA, Jorge Luis. Delitos contra la función pública, p. 314).

[132] Vide SERRANO GOMEZ, Alfonso. Derecho Penal, Parte Especial, p. 747 e ss.

[133] COSTA E SILVA, A. J. da. Corrupção passiva e corrupção ativa. Justitia. São Paulo: Procuradoria-Geral de Justiça/Associação Paulista do Ministério Público, v. 27, 1959, p. 8. A incriminação da corrupção não se limita, porém, à tutela dos deveres funcionais dos agentes públicos, uma vez que nem toda infração desses deveres é ou deve ser, ao mesmo tempo, delito. Se assim não fosse, a separação entre infrações administrativas e delitos seria completamente impossível. Por essa razão é que também outros valores são violados através da prática da corrupção, além dos deveres próprios da função pública (cf. BACIGALUPO, Enrique. Sobre la reforma de los delitos de funcionarios. In: Documentación jurídica, v.2, n.37-40, 1983, p.387).

[134] Vale lembrar que a Convenção Penal sobre a Corrupção do Conselho da Europa, de 27 de janeiro de 1999, adota uma definição mais ampla de corrupção, abrangendo nesse conceito, entre outros delitos, a malversação de dinheiro público, a prevaricação, a lavagem de dinheiro e o tráfico de influência.

[135] O legislador, procurando deslindar dúvida quanto à eventual incriminação de jurados, dispôs no artigo 438 do Código de Processo Penal que “os jurados serão responsáveis criminalmente, nos mesmos termos em que o são os juízes de ofício, por concussão, corrupção ou prevaricação (Código Penal, arts. 316, 317, §§ 1.º e 2.º, e 319)”.

[136] Cf. DUPUIS, Maria Benedetta. La Corruzione. Padova: Cedam, 1995,, p.08.

[137] Pondera-se, com acerto, que o “crime existe mesmo que o funcionário não esteja em exercício. Ele pode entrar em exercício para desempenhar a função conforme o que solicitou, recebeu ou aceitou, ou não entrar ou assumir o exercício, exatamente para que a pessoa que esteja no cargo proceda favoravelmente a quem forneceu a vantagem ou a promessa. Assim, pois, não só o funcionário em exercício como quem está de licença ou férias, ou quem já foi nomeado ou designado, mas não entrou em exercício de função, pode ser agente do delito...” (TEIXEIRA, Sílvio Martins. Tratado de Direito Penal, v. X, p. 80-81).

[138] Muitas vezes o funcionário público, ao solicitar a vantagem, corrompe não só o cargo que ocupa, mas também o particular a quem oferece os seus préstimos para a satisfação dos desejos, sejam justos ou não, mediante a concreção da vantagem almejada (cf. MAGGIORE, Giuseppe. Derecho Penal, v. III, p. 191).

[139] Cf. HUNGRIA, Nélson, op. cit., p. 368.

[140] Cf. DUPUIS, Maria Benedetta, op. cit., p.36.

[141] Tal assertiva é complementada pela precisa lição de que “a vantagem concedida ou prometida não se resume em dinheiro ou bens, podendo consistir em favores indevidos que, por sua natureza, influam na conduta do funcionário” (TÁCITO, Caio. Corrupção de funcionário público. Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro, v. XIII. Rio de Janeiro: Borsói, s/d., p. 160). Vide nesse sentido também CÓRDOBA RODA, Juan. El cohecho de funcionarios públicos. In: Estudios jurídicos en honor del profesor Octavio Pey-Vitoria, p.177. De acordo com esse autor, “em relação à finalidade do preceito, digamos que o bem jurídico tutelado resulta igualmente atacado se a ‘dádiva’ ou ‘presente’ têm o mencionado conteúdo material, como se têm outro diferente. Sob o ponto de vista político-criminal, resultaria insatisfatório que a dádiva consistente na entrega de uma soma econômica motivasse a aplicação do presente tipo e que, por outro lado, a consistente na firme promessa de promover a ascensão do funcionário ou de encarregar-lhe a direção de assuntos profissionais de uma quantidade e significação muito superiores àquela soma econômica ficassem fora do marco do preceito penal”.

[142] Cf. CALÓN, Cuello. Derecho Penal, Parte Especial, t. II, v. I. 14. ed. Barcelona: Bosch, 1975, p. 441.

[143] Cf. LAMARCA PEREZ, Carmen (Coord.). Manual de Derecho Penal, Parte Especial. Madrid: Editorial COLEX, 2001, p.574.

[144] Cf. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Penal, v. III, t. VIII, p. 244.

[145] “Si o presente é dado em attenção a um uso geral – como gorgetas, presentes de anno novo – para recompensar obsequio especiaes não concernentes ao officio, para satisfazer deveres de hospitalidade, ou o sentimento de gratidão pessoal, ou para expressar a consideração etc., não se dá corrupção” (VON LISZT, Franz. Tratado de Direito Penal alemão, t. II, p. 496).

[146] Cf. RODRÍGUEZ PUERTA, María José, op. cit., p.201. Portanto, ou as ofertas insignificantes não são objetivamente adequadas para motivar o funcionário a atuar, ou encontram-se amparadas pelos usos sociais. São exemplos das primeiras os brindes de pequeno valor e das últimas as cestas enviadas em ocasiões especiais (Natal, Ano Novo, etc.). Vide, a esse respeito, OLAIZOLA NOGALES, Inés. El delito de cohecho. Valencia: Tirant lo Blanch, 1999, p.338 e ss. Para Muñoz Conde, “nada disso deveria acontecer se a Administração funcionasse corretamente, mas é inevitável que o cidadão queira se poupar de incômodos e aborrecimentos ‘gratificando’ de algum modo o funcionário que o ajuda” (Derecho Penal, Parte Especial, p.961).

[147] Pode-se afirmar com maior precisão que “na corrupção própria, o funcionário retarda ou deixa de praticar ato de ofício, ou o pratica com violação do dever funcional, objetivando a vantagem indevida. Na corrupção imprópria, o ato de ofício é regularmente praticado, sem desvio do dever funcional, mas mediante a solicitação ou aceitação da vantagem ou promessa” (TÁCITO, Caio, op. cit., p. 160).

[148] Assevera-se, corretamente, que “a não distinção entre licitude e ilicitude do ato ou abstenção visada pelo pacto de corrução decorre de que o motivo da reação penal, na espécie, é, antes de tudo, a pravidade do tráfico, do comércio da função pública, a acarretar o desprestígio e o descrédito da administração ou a suspeita em torno desta” (HUNGRIA, Nélson, op. cit., p. 367).

[149] Cf. RODRÍGUEZ PUERTA, María José, op. cit., p.179.

[150] A vantagem na corrupção subseqüente pode perfeitamente ser esperada pelo agente que efetua o ato, visando beneficiar o particular, sabendo que se trata de pessoa de posse, que tem o costume de gratificar aqueles que satisfazem seus interesses pessoais (cf. HUNGRIA, Nélson, op. cit., p. 367).

[151] Cf. COBO DEL ROSAL, Manuel (Coord.). Curso de Derecho Penal español, Parte Especial. Madrid: Marcial Pons, 1997, v.II, p.375-376.

[152] Embora competência seja enfocada no âmbito processual como a delimitação do poder jurisdicional legislativamente estabelecida ou, mais precisamente, como a medida e o limite da jurisdição (cf. MARQUES, Frederico. Da competência em matéria penal. Campinas: Millennium, 2000, p. 40), é ela também compreendida no Direito Administrativo como “o poder atribuído ao agente da Administração para o desempenho específico de suas funções” (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro, p. 128).

[153] Cf. MANZINI, Vincenzo, op. cit., p. 240 e 261; MAGGIORE, Giuseppe, op. cit., p. 193; SOLER, Sebastian. Derecho Penal argentino, t. V, p. 179; CALÓN, Cuello, op. cit., p. 442; CONDE, Muñoz, op. cit., p. 959; HUNGRIA, Nélson, op. cit., p. 369; MAGALHÃES NORONHA, E., op. cit., p. 258.

[154] Eis a redação da referida norma incriminadora: “Constitui crime funcional contra a ordem tributária (...) exigir, solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de iniciar seu exercício, mas em razão dela, vantagem indevida; ou aceitar promessa de tal vantagem, para deixar de lançar ou cobrar tributo ou contribuição social, ou cobrá-los parcialmente: Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa”.

[155] Cf. PRADO, Luiz Regis. Código Penal anotado, 2. ed., p. 946.

[156] Cf. HUNGRIA, Nélson, op. cit., p. 369; FRANCO, Alberto Silva et alii, Código Penal e sua interpretação jurisprudencial, v. I, t. II, p. 3.605-3.606; VILLADA, Jorge Luis, op. cit., p. 324; CONDE, Muñoz, op. cit., p. 960. Assinala-se, contudo, que é possível a tentativa quando a ação não se reveste num único ato, v.g., “o funcionário solicita por escrito retribuição por um ato a praticar – sem que até então nada tenha havido entre ele e o destinatário da carta – mas se esta é interceptada pela Polícia, pelo chefe da repartição etc., cremos não se poder negar que ele tentou solicitar vantagem. Uma solicitação que não chega ao conhecimento do solicitado é solicitação imperfeita, inacabada ou tentada; não, certamente, apenas cogitada ou preparada” (MAGALHÃES NORONHA, E., op. cit., p. 262-263). Tal exceção apontada por Noronha é criticada pela melhor doutrina, uma vez que “na medida em que a solicitação haja sido feita formalmente existe já a consumação e que esta é a fase que há que estimar quando, por exemplo, no caso exposto por ditas autoras, a solicitação é interceptada pela polícia” (CONDE, Muñoz, op. cit., p. 960).

[157] Cf. HUNGRIA, Nélson, op. cit., p. 370. Vide, ainda, COSTA E SILVA, A. J. da, op. cit., p. 8.

[158] Cf. FRAGOSO, H. C., op. cit., p. 918.

[159] Cf. PRADO, Luiz Regis. Código Penal anotado, 2. ed., p. 946.

[160] Cf. BASTOS, A. B. Brado. Da corrupção passiva. Justitia. São Paulo: Procuradoria-Geral de Justiça/Associação Paulista do Ministério Público, v. 27, 1959, p. 78.

[161] O Anteprojeto da Parte Especial do Código Penal, de 1999, majorou a pena mínima de um para dois anos, conforme se verifica no artigo 324, mantendo apenas a figura da corrupção passiva qualificada no seu parágrafo único, com a seguinte redação: “Aumenta-se a pena de um terço, se, em conseqüência da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou deixa de praticar qualquer ato de ofício ou o pratica infringindo dever funcional”.

[162] O artigo 132 continha a seguinte redação: “O que der ou prometter peita será punido com as mesmas penas impostas ao peitado, na conformidade dos artigos antecedentes, menos a de perda de emprego, quando o tiver, e todo o acto em que intervier a peita será nullo”. Também dispunha o artigo 134 que: “Todas as disposições dos arts. 130, 131 e 132, relativas aos peitados e peitantes, se observarão a respeito dos subornados e subornadores”.

[163] O artigo 217 continha o seguinte preceito: “O que dér ou prometter peita, ou suborno, sera punido com as mesmas penas impostas ao peitado ou subornado”.

[164] COSTA E SILVA, A. J. da. Corrupção passiva e corrupção ativa. Justitia, v. 27, p. 8 e 10.

[165] Cf. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Penal, v. III, t. VIII, p. 281.

[166] Cf. RODRÍGUEZ DEVESA, J. M. Cohecho. In: Nueva Enciclopedia Jurídica. Barcelona: Francisco Seix, 1952, t.IV, p.358.

[167] Como bem se assinala, “não se trata, portanto, de um delito bilateral, no sentido de que o delito surge com o apefeiçoamento de um acordo de vontades entre o particular e o funcionário e, sim, de dois delitos distintos e autonomamente punidos” (MUÑOZ CONDE, Francisco. Derecho Penal, Parte Especial, p. 957).

[168] Cf. PAGLIARO, Antonio e COSTA JR., Paulo José. Dos crimes contra a Administração Pública, p. 230.

[169] Cf. OLIVEIRA, Edmundo. Crimes de corrupção, p. 71.

[170] Cf. RODRÍGUEZ PUERTA, María José. El delito de cohecho: problemática jurídico-penal del soborno de funcionarios, p.153. Cumpre registrar que o Código Penal espanhol pune também, a título de corrupção ativa, a conduta daqueles que “atendem às solicitudes das autoridades ou funcionários públicos” (art.423.2).

[171] Cf. TUCCI, Rogério Lauria. Corrupção ativa. Enciclopédia Saraiva do Direito. São Paulo: Saraiva, 1978, v. 28, p. 50. Leciona-se, contudo, que “pode configurar-se o crime no caso de corrupção de funcionário para que se pratique ato estranho a sua competência mas dentro de seu poder de fato. Lembre-se o exemplo (...) de alguém que peita um contínuo para que esse esconda um documento confiado a sua custódia” (OLIVEIRA, Edmundo, op. cit., p. 72).

[172] Cf. DELMANTO, Celso et alii. Código Penal comentado, p. 595.

[173] Aliás, “tratando-se do delito de corrupção ativa, basta, para a sua configuração, o só oferecimento ou a tentativa, de colocar ao alcance da mão do funcionário público a oferta de algum bem em dinheiro, concessão de créditos, nomeações, comércio sexual, etc., não sendo necessária a entrega da coisa por parte do sujeito ativo” (VILLADA, Jorge Luis. Delitos contra la función pública, p. 338).

[174] Cf. MAGALHÃES NORONHA, E., Direito Penal, v. IV, p. 336.

[175] O Anteprojeto da Parte Especial do Código Penal, de 1999, inseriu a corrupção ativa no artigo 338, elevando a pena mínima para dois anos e reduzindo a pena máxima para cinco anos de reclusão. Também a pena para a corrupção qualificada foi majorada de um terço para metade. Eis a redação do aludido preceito: “Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício.

Pena – reclusão, de dois a cinco anos, e multa.

Aumento de pena

Parágrafo único. Aumenta-se a pena de metade se, em razão da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou omite ato de ofício, ou o pratica infringindo dever funcional”.

[176] Para Rodríguez Devesa, em alguns casos deve ser reservada ao particular a possibilidade de isenção de pena, nas hipóteses de menor gravidade ou quando trate ele próprio de denunciar o ocorrido. A ausência desse estímulo legal favoreceria a prática do delito, que é em regra praticado em segredo, de forma que ambas as partes teriam interesse em manter o sigilo (op. cit., p.363-364).

[177] A respeito da paridade das penas para os delitos de corrupção ativa e passiva, alega-se que “certamente o peitante deve ser punido, porque corrompe a administração publica, tenta a ganancia dos funccionarios, é, portanto, um factor de immoralidade e de perturbação social. Mas, como bem disse Zanardelli, o funccionario corrompido infringe maior número de deveres e deveres mais importantes do que o particular corruptor. E casos há acrescento eu, em que o particular é forçado a commetter o crime. Com effeito, quando a venalidade e a corrupção lavrar cynicamente, não pode o particular obter o despacho dos seus negócios, sem gratificar o funccionario” (SOARES, Oscar de. Código Penal da República dos Estados Unidos do Brasil commentado. 3. ed. Rio de Janeiro: H. Garnier, s/d., p. 301).

[178] Cf. VELARDE ARAMAYO, María Silvia. Corrupción y transparencia em el ámbito financiero internacional. In: La corrupción: aspectos jurídicos y económicos, p.61.

[179] MANFRONI, Carlos A. Soborno transnacional, p.36.

[180] Ibidem, p.40.
[181] Ibidem, p.28.

[182] Cf. OLIVEIRA, Edmundo. Crimes de corrupção, p.71.

[183] Cf. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal, v.IX, p.368.

[184] Assim, salienta-se que “nada impede que também uma vantagem não-patrimonial possa assumir utilidade relevante para os fins do delito de corrupção: o que parece decisivo é a possibilidade de se considerar tal vantagem como uma retribuição” (FIANDACA, Giovanni e MUSCO, Enzo. Diritto Penale, Parte Speciale, v.I, p.223).

[185] Nesse sentido, TÁCITO, Caio. Corrupção de funcionário público. Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro, v.XIII, p.160.

[186] Cf. CUELLO CALÓN, Eugenio. Derecho Penal, Parte Especial, t.II, v.I, p.441.

[187] Cf. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro, p.66.

[188] Cf. MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público, v.II. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p.1299-1300.

[189] A Convenção sobre o Combate à Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais considera funcionário público estrangeiro “qualquer pessoa responsável por cargo legislativo, administrativo ou jurídico de um país estrangeiro, seja ela nomeada ou eleita; qualquer pessoa que exerça função pública para um país estrangeiro, inclusive para representação ou empresa pública; e qualquer funcionário ou representante de organização pública internacional” (artigo 1.4, a). A seu turno, a Convenção Interamericana contra a Corrupção conceitua funcionário público como sendo qualquer funcionário ou empregado de um Estado ou de suas entidades, inclusive os que tenham sido selecionados, nomeados ou eleitos para desempenhar atividade ou funções em nome do Estado ou a serviço do Estado em qualquer de seus níveis hierárquicos (artigo I). Observe-se que esta última definição é mais abrangente, pois permite incluir os funcionários de órgãos que não pertençam aos três Poderes e as pessoas que tenham sido designadas ou eleitas para um cargo mas ainda não tenham assumido suas funções (cf. MANFRONI, Carlos A. La Convención Interamericana contra la Corrupción anotada y comentada. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 2001, p.40-41). Por outra parte, o conceito do convênio da OCDE é mais amplo que seus antecedentes, pois estende seus efeitos à corrupção de qualquer funcionário ou agente de uma organização pública internacional, tendo, nesse particular aspecto, introduzido verdadeira inovação na matéria, no que foi seguida pelo texto do Código Penal brasileiro.

[190] Em sentido diverso, a mencionada Convenção conceitua como “ação ou omissão do funcionário no desempenho de suas funções oficiais” qualquer uso do cargo do funcionário público, seja esse cargo, ou não, da competência legal do funcionário (artigo 1.4, c). Essa definição é melhor que a da lei penal brasileira, pois, embora não se possa admitir que a corrupção vise a realização ou a omissão de qualquer ato que não tenha relação com a atividade governamental, pode ocorrer que o funcionário se utilize de sua influência ou autoridade fora da esfera de sua competência ou excedendo os limites da mesma para conseguir o que o autor pretende com o suborno.

[191] Na Itália, é expressamente excluída do âmbito do delito de corrupção a reação legítima aos atos arbitrários dos funcionários públicos. Nesse diapasão, salienta a doutrina italiana que “de uma concepção totalitária, que subordina à comunidade a pessoa humana e os organismos minoritários, deriva o princípio jurídico-constitucional segundo o qual não pode haver lugar para uma eventual licitude da resistência contra o funcionário que se comporta de forma ilegal; já uma concepção do tipo liberal-democrática se traduz, ao contrário, num ordenamento que não pode deixar de reconhecer o direito ou, pelo menos, a faculdade de resistência a ordens injustas” (ANTOLISEI, Francesco. Manuale di Diritto Penale, Parte Speciale, v.II. Milano: Giuffrè, 1977, p.379).

[192] Cf. MANFRONI, Carlos A., op. cit., p.136.

[193] Cf. MANFRONI, Carlos A. Soborno transnacional, p.40. Acrescente-se ainda que a diminuição da corrupção leva a uma redução dos gastos do governo e essa circunstância, por sua vez, torna possível uma menor pressão tributária. A diminuição da pressão tributária, a seu turno, incentiva novos investimentos e gera fontes de trabalho. Ou seja, a lealdade nas transações comerciais gera o bem-estar de todos.

[194] Cf. SUÁREZ MONTES, Rodrigo Fabio. Consideraciones político-criminales sobre el delito de tráfico de influencias. In: Política Criminal y reforma penal (Homenaje a la memoria del Prof. Dr. D. Juan del Rosal), p.1088 e ss.

[195] Cf. LAMARCA PÉREZ, Carmen (Coord.), op. cit., p.580.
[196] Cf. COBO DEL ROSAL, Manuel (Coord.), op. cit., p.391.
[197] Cf. MAGALHÃES NORONHA, E. Direito Penal, v.IV, p.326.

[198] Cf. MANZINI, Vincenzo, op. cit., p.254; GUSMÃO, Sady Cardoso de. Exploração de prestígio. Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro, v.XXII. Rio de Janeiro: Borsói, s/d., p.21; MAGALHÃES NORONHA, E., op. cit., p.326.

[199] Cf. PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal brasileiro, Parte Geral. 3. ed. São Paulo: RT, 2002, p.121 e ss.

[200] Cf. PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal brasileiro, Parte Geral, p.392 e ss.

[201] Cf. PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal brasileiro, Parte Geral, p.219 e ss.

[202] Cf. GRACIA MARTÍN, Luis. La cuestión de la responsabilidad penal de las propias personas jurídicas. Actualidad Penal. Madrid: Actualidad Editorial,  n.39, 1993, p.586.

[203] Cf. ROMANO, Mario. Commentario sistematico del Codice Penale. Milano: Giuffrè, 1987, p.353.

[204] Cf. WELZEL, Hans. Derecho Penal alemán. Trad. Juan Bustos Ramírez e Sérgio Yáñez Pérez. 11. ed. Santiago: Jurídica de Chile, 1970, p.198 e ss.
[205] Cf. PRADO, Luiz Regis, op. cit., p.221.

[206] Cf. LE CANNU, Paul. Les sanctions applicables aux personnes morales en raison de leur responsabilité. Les Petites Affiches, 120, 1993, p.7 e ss.

[207] Assim, PATERNITI, Carlo. Diritto Penale dell’economia. Torino: Giappichelli, p.16-18.

[208] No sentido do texto, por exemplo, o Convênio do Conselho da Europa, de 27 de janeiro de 1999, de Direito Penal sobre Corrupção (art.12).