Liberdade de Expressão

Comunicado de imprensa R139/21

Relatorias Especiais manifestam preocupação com a utilização de mecanismos penais por difamação contra um professor universitário no Brasil e instam o Estado a respeitar a liberdade acadêmica

 

28 de maio de 2021

Washington D.C. – A Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão (RELE) e a Relatoria Especial sobre os Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (REDESCA) da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) manifestam sua preocupação com a interposição de uma ação penal de difamação contra o professor da Universidade de São Paulo (USP), Conrado Hübner Mendes, e instam o Estado brasileiro a respeitar o direito à liberdade de expressão e à liberdade acadêmica.

De acordo com as informações de conhecimento público, em 20 de maio, o Procurador Geral da República (PGR) do Brasil, Antônio Augusto Brandão de Aras, interpôs na Justiça Federal do Distrito Federal uma denúncia penal por calúnia, injúria e difamação em desfavor de Conrado Hübner Mendes, professor da Faculdade de Direito da USP e colunista do jornal Folha de São Paulo. Em seu texto, o Procurador Geral argumentou que o professor teria cometido crimes contra a sua honra ao criticar a sua atuação por meio de uma série de tweets e de um artigo no jornal Folha de S. Paulo, datados de janeiro deste ano. Conforme puderam conhecer as Relatorias, as mensagens de Conrado Hübner Mendes que teriam motivado a ação penal referiam-se ao Procurador Geral como um "servo do presidente" e afirmavam que algumas omissões em sua atuação judicial estariam beneficiando o chefe de Estado e seus interesses políticos. Para a defesa legal de Augusto Aras, o professor e colunista não teria se limitado a "promover crítica mediante narrativa ou simplesmente formular uma crítica ácida ou com teor altamente negativo", mas teria também imputado publicamente ao procurador o crime de prevaricação.

Segundo as informações recebidas pelas Relatorias, antes de apresentar uma ação penal, o Procurador Geral da República buscou outras vias punitivas contra o professor. Como se tornou público, em 3 de maio, o Procurador requereu que a Universidade de São Paulo, por meio da sua Comissão de Ética, investigue a conduta do professor Conrado Mendes pelas publicações realizadas em seu desfavor – as quais, no seu entender, constituíam ataques à sua honra e refletiam uma violação das normas éticas –, e que "sejam adotadas as providências que o caso requer". Em termos concretos, o Procurador Geral da República afirmou que as declarações do professor Conrado Mendes teriam infringido os artigos 5, 6 e 7 do Código de Ética da USP, que estabelecem, entre outros pontos, o dever de "incentivar o respeito à verdade", "agir de forma compatível com a moralidade"; abster-se de "divulgar informações de maneira sensacionalista, promocional ou inverídica"; e o dever de "comentar fatos cuja veracidade e procedência não tenham sido confirmadas ou identificadas". Posteriormente, um comunicado público da Secretaria de Comunicação da PGR advertiu que "a questão em debate não é a crítica e sim a sua falta de fundamento e a forma desrespeitosa como ela é feita, sem levar em consideração que todas as manifestações do PGR foram acolhidas pelo STF [Supremo Tribunal Federal]".

O pedido de investigação ética despertou diversas críticas no âmbito acadêmico. Assim, por exemplo, em 19 de maio, 88 professores universitários apoiaram Conrado Hübner Mendes publicamente e repudiaram a tentativa do Procurador Geral de intimidar "um professor universitário que o critica, cuja liberdade ele deveria respeitar e defender, em comparação à passividade constante que ele reserva ao presidente da República, a quem ele deveria rigorosamente fiscalizar". Por outro lado, um abaixo-assinado organizado por professores externos à USP e direcionado à Reitoria da universidade sustentou que se trata de um "ataque sem precedentes" à autonomia acadêmica, científica e intelectual da USP, que busca "constranger e ameaçar não somente o inviolável direito à liberdade de expressão do prof. Hübner Mendes, mas o de todos os docentes universitários, de dentro e de fora da USP, que têm diferentes tipos de atuação no debate público, manifestando-se sobre temas de interesse geral, contribuindo para a pluralidade de pensamento e para a análise crítica, e que prestam, dessa forma, um serviço de valor inestimável à sociedade à nossa democracia".

Primeiramente, a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão observa que as críticas apresentadas pelo professor e colunista Conrado Hübner Mendes que motivaram a ação penal estão dirigidas a uma autoridade pública e a decisões inerentes ao seu cargo – e, por isso, sujeitas à controvérsia e ao escrutínio público pelos princípios que regem uma sociedade democrática.  A CIDH ressaltou em diversas ocasiões que a utilização de mecanismos penais para punir o discurso relativo a assuntos de interesse público ou funcionários públicos viola, por si só, o artigo 13 da Convenção Americana, pois não há um interesse social imperativo que a justifique, tratando-se, assim, de um expediente desnecessário e desproporcional. Isso também pode se tornar um meio de censura indireta, por conta do seu efeito amedrontador e inibidor sobre as expressões críticas, impedindo o debate sobre temas de interesse para a sociedade.

Esse diferente nível de tolerância diante da crítica aos que ocupam ou aspiram a ocupar cargos públicos baseia-se na natureza das funções que eles cumprem e no fato de que eles se expõem voluntariamente a um escrutínio mais exigente. Assim, as suas atividades saem do âmbito privado para inserir-se no âmbito do debate público. Isso não implica que eles não possam ser judicialmente protegidos em sua honra quando ela se torna objeto de ataques injustificados, mas devem sê-lo de uma maneira que esteja de acordo com os princípios do pluralismo democrático, e por mecanismos que não tenham o potencial de gerar inibição ou autocensura, conforme entendeu a Corte Interamericana de Direitos Humanos. De igual modo, tem-se ressaltado que existem outros meios menos restritivos para que as pessoas envolvidas em assuntos de interesse público possam defender sua reputação de ataques que considerem infundados. Em função de sua autoridade, elas contam com mais possibilidades e acesso a canais para dar explicações ou contra-arrestar expressões críticas.

A RELE e a REDESCA também recordam que a liberdade acadêmica é um elemento fundamental no fortalecimento da democracia, compreendendo a liberdade que as pessoas devem expressar suas ideias e opiniões sem discriminação ou medo de repressão pelo Estado ou qualquer outra instituição. A Comissão destacou o papel transcendental das universidades como centros de pensamento crítico e intercâmbio de ideias. Nessa linha de entendimento, o Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas enfatizou que "só se pode desfrutar do direito à educação se ele estiver acompanhado da liberdade acadêmica do corpo docente e dos alunos". Do mesmo modo, a REDESCA destaca que o Comitê reconheceu a existência de uma série de pressões de natureza política, e de outros tipos, sobre o corpo docente da educação superior; e que é necessário prestar uma proteção reforçada aos seus direitos trabalhistas e sindicais, bem como à liberdade acadêmica, para que se possa usufruir de todos os direitos humanos reconhecidos internacionalmente, sem discriminação ou medo de represálias.

Em concordância com as considerações acima, as Relatorias conclamam o Estado do Brasil a se abster de utilizar mecanismos judiciais que possam violar o direito à liberdade de expressão de atores da comunidade acadêmica, fomentando um clima de autocensura; e instam as autoridades a promover e respeitar a liberdade acadêmica e a autonomia universitária.

 

A Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão é um escritório criado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), a fim de estimular a defesa continental do direito à liberdade de pensamento e expressão, considerando o seu papel fundamental na consolidação e no desenvolvimento do sistema democrático.

 

A REDESCA é um Escritório autônomo da CIDH, especialmente criado para apoiar a Comissão no cumprimento do seu mandato de promoção e proteção dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais no continente americano

 

R139/21