Imprensa da CIDH
Washington, D.C. - A Comissão Interamericana de Direitos Humanos - CIDH apresentou em 25 de março de 2021 perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos - Corte IDH o caso Associação Civil Memoria Ativa (Vítimas e seus familiares no atentado terrorista à sede da Associação Mutual Israelita Argentina, ocorrido em 18 de julho de 1994), relativo à Argentina.
O caso se refere à responsabilidade internacional do Estado argentino em relação ao atentado terrorista perpetrado contra a sede da Associação Mutual Israelita Argentina (AMIA) em Buenos Aires, que causou a morte de 85 pessoas e deixou ao menos outras 151 pessoas feridas em estado de gravidade, assim como em relação a situação de impunidade na qual se encontra o atentado.
Em seu Relatório de Mérito, a CIDH considerou que no ano 2005 o Estado aceitou a sua responsabilidade pelo incumprimento do dever de prevenção e por não ter investigado o atentado de maneira adequada e efetiva. O Estado não realizou um reconhecimento explícito a respeito dos atos posteriores ao ano de 2005. Levando esse contexto em consideração, assim como o seu papel de garantidor da ordem pública interamericana e a necessidade de determinar o alcance da responsabilidade do Estado e as características das medidas de reparação, a Comissão analisou de forma integral todos os fatos e elementos do presente assunto.
Quanto ao dever de prevenção, a Comissão considerou, com base nos elementos desenvolvidos pela jurisprudência interamericana para analisar este tipo de responsabilidade, que o Estado estava ciente da existência de uma situação de risco em locais identificados com a comunidade judaica argentina, particularmente depois da ocorrência do atentado à Embaixada de Israel em 1992. Em segundo lugar, o referido risco era real e imediato, a prova disso é que havia medidas de segurança em vigor, e que houve eventos anteriores ao ataque que chamaram a atenção para a custódia da AMIA. Em terceiro lugar, a CIDH estabeleceu que o Estado não adotou medidas cabíveis para evitar esse risco, uma vez que nunca foi promovido um plano geral de combate ao terrorismo, nem foram tomadas outras medidas adequadas para proteger o edifício.
Embora não tenha sido comprovado que as omissões do Estado em matéria de prevenção tivessem um caráter deliberadamente contra a comunidade judaica argentina, a Comissão considerou que tais omissões demonstram que o Estado se absteve de tomar medidas razoáveis para proteger um grupo suscetível a sofrer um ataque discriminatório. O risco à vida, a respeito do qual o Estado não aceitou responsabilidade, implicava também um risco de configuração de um ato de discriminação que finalmente se materializou. Por isso, as omissões do Estado em proteger os direitos à vida e à integridade física implicaram também em uma violação ao direito à igualdade e não discriminação na falta de prevenção de um ataque com um propósito discriminatório.
Com relação aos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial, a CIDH dividiu a sua análise em três grupos: (i) a investigação conduzida pelo Juízo Criminal e Correcional Federal N° 9 ("Juízo Federal N° 9") entre os anos 1994 e 2005; (ii) a investigação encabeçada pela Unidade Fiscal de Investigação ao Atentado à AMIA (UFI AMIA) desde 2005 até a atualidade; e (iii) os processos judiciais pelo encobrimento do atentado.
A respeito do processo levado a cabo pelo Juízo Federal N° 9, com base na prova disponível, a Comissão concluiu que os órgãos estatais encarregados da investigação cometeram graves irregularidades. Observou-se a deficiente preservação da cena do crime e a interrupção irracional de determinadas linhas lógicas de investigação. Além disso, observou-se o desembolso, por parte das autoridades judiciais e de inteligência, de uma importante quantia de dinheiro proveniente dos fundos reservados à Secretaria de Inteligência do Estado (SIDE) para o então único imputado na causa para que este incorporasse informação à causa que pudesse construir uma hipótese acusatória sem sustento.
A CIDH fundamentou que a conduta das autoridades encarregadas da investigação – especialmente das diligências iniciais e aquelas sob responsabilidade do Juízo N° 9 – em vez de impulsionar seriamente a investigação e a punição dos responsáveis, incorreu em falhas graves, irregularidades e desvio deliberado da investigação por mais de 8 anos. O julgamento de uma hipótese acusatória fabricada por funcionários do Estado só foi possível a partir de uma atuação carente de imparcialidade por parte do juiz encarregado do caso e tornou-se um fator que ocasionou a não investigação das verdadeiras causas do atentado e todas as responsabilidades envolvidas. A Comissão concluiu que essas condutas e omissões representam atos de encobrimento deliberado e constituem a principal razão pela qual o atentado permanece impune até o dia de hoje.
Em relação à investigação conduzida pela UFI AMIA, observou-se que o Estado adotou algumas medidas pertinentes para processar a investigação e corrigir os danos múltiplos ocorridos perante o Juízo Federal nº 9. Desde 2015, a UFI AMIA tem realizado uma atividade probatória que possibilitou a revelação de falhas ainda maiores que ocorreram durante o levantamento e identificação de material probatório essencial nas diligências iniciais. Entretanto, as mesmas foram precedidas por amplos períodos de demora, sem que se tivesse dado uma justificativa a esse respeito. Além disso, o Estado não demonstrou que, em conformidade com o princípio de devida diligência, se tivessem investigado e realizado de forma exaustiva todas as diligências requeridas. Entre as deficiências identificadas se encontram: a ausência de uma devida conservação e adequada gestão de material orgânico de extrema relevância para a investigação; a demora na realização de perícias do referido material; a omissão na realização de perícias cruciais para confirmar ou desmentir elementos cruciais da hipótese acusatória sustentada pelo Ministério Público; e a emissão de dois pareceres fiscais de acusação baseados de forma preponderante em informação prestada por supostas fontes de inteligência humana, que não foi incorporada ao processo judicial conforme as regras da prova testemunhal e cuja identidade não pôde ser corroborada pelos magistrados em exercício nem pelos demandantes, as vítimas ou seus familiares.
Em relação aos processos judiciais pelo encobrimento do atentado, a Comissão destacou que, passados mais de 20 anos desde o início do procedimento judicial pelas irregularidades cometidas durante a investigação realizada pelo Juízo Federal nº 9, ainda não foi proferida uma sentença definitiva.
A CIDH concluiu que há uma demora injustificada na investigação do atentado à AMIA e no que diz respeito aos processos de encobrimento, o que tem afetado o direito à verdade a cerca do ocorrido, impactando particularmente as vítimas e seus familiares.
Em relação à informação sigilosa em poder da SIDE, de seus órgãos sucessores e da UFI-AMIA, concluiu-se que, de 18 de julho de 1994 a março de 2015, o Estado argentino violou o direito da parte peticionária de acessar informações vinculadas com o atentado, uma vez que manteve fora de seu alcance a documentação classificada como secreta pelos próprios órgãos de inteligência que participaram nas investigações com base na normativa vigente.
No que diz respeito às condições de preservação dos acervos documentais e ao acesso à informação cujo sigilo foi levantado, a Comissão observou que a preservação deficiente ou nula dos referidos acervos por longos períodos compromete gravemente a responsabilidade internacional do Estado, visto que constitui um impedimento de fato ao acesso eficiente das vítimas e seus familiares às informações relativas ao atentado que estão em poder do Estado. Consequentemente, a Comissão concluiu que o Estado argentino não cumpriu até a data de hoje com a sua obrigação de garantir à parte peticionária o acesso aos arquivos estaduais onde se encontra armazenada a referida informação.
A CIDH concluiu que o Estado violou o direito à integridade psíquica e moral dos familiares das vítimas, e ressaltou que a circunstância de ser familiar de uma vítima de um ato terrorista da magnitude do atentado à AMIA gera por si só um severo sofrimento e angústia. Além disso, tal sofrimento foi agravado pela situação de impunidade, que é diretamente imputável ao Estado pela atuação de seus agentes, que em alguns períodos, deliberadamente, desviaram a investigação, favorecendo o encobrimento da verdade e a possibilidade de identificar e punir os responsáveis.
Diante de tudo o que foi colocado, a Comissão concluiu que o Estado argentino é responsável pela violação dos direitos à vida, à integridade física, ao acesso à informação, às garantias judiciais, à igualdade e à proteção judicial, conforme estabelecido nos artigos 4.1, 5.1, 8.1, 13, 24 e 25.1 da Convenção Americana em relação com seu artigo 1.1. Adicionalmente, a CIDH determinou que o Estado violou o artigo 13 da Convenção Americana em relação com seu artigo 2.
Em seu Relatório de Mérito, a Comissão recomendou ao Estado:
1. Conduzir e levar a cabo, de forma eficaz e em prazo razoável, a investigação dos fatos do caso, a fim de julgar e punir todos os responsáveis materiais e intelectuais pelas graves violações de direitos humanos declaradas no Relatório de Mérito. Em especial, o Estado deve prosseguir com as investigações judiciais para esclarecer o atentado à sede da AMIA e punir todos os autores materiais e intelectuais, assim como aqueles que tenham obstaculizado ou encoberto as investigações. Com o objetivo de verificar os avanços, o Estado deverá retomar a prática de publicar de forma periódica os informes de gestão da UFI-AMIA. Além disso, deverá realizar reuniões com os familiares a fim de lhes brindar informação sobre os avanços nas investigações.
2. Reparar adequadamente todas as violações aos direitos humanos das vítimas, violações essas identificadas no relatório, tanto no aspecto material como no imaterial. Essa reparação deve incluir medidas de compensação pecuniária e satisfação para reparar tanto o dano material quanto o moral. Dentre as medidas de satisfação que deverão ser implementadas com a participação da parte peticionária, das vítimas e dos familiares, se encontram: i) um ato de desculpas públicas para todas as vítimas do atentado; ii) a realização de atos comemorativos que contribuam com a preservação da verdade e a memória em relação com o atentado à AMIA como um passo fundamental à dignificação das vítimas fatais e seus familiares; iii) a realização de um documentário audiovisual sobre os fatos do presente caso, suas vítimas e a busca dos seus familiares por justiça.
3. Adotar e implementar as políticas e medidas necessárias para estabelecer um mecanismo de gestão e prestação de contas de despesas sigilosas atribuídas aos órgãos de inteligência do Estado argentino. Tais ações deverão perseguir o objetivo de garantir o adequado registro desses fundos, a legalidade de seu uso e seu controle externo e oportuno.
4. Elaborar e implementar programas de formação e capacitação para todos os membros dos órgãos federais de segurança e inteligência, assim como para os integrantes do Poder Judiciário da Nação, que visem o fortalecimento das capacidades de prevenção e investigação de crimes complexos, vinculadas com a luta antiterrorismo. Além disso, difundir os princípios e normas básicas de proteção dos direitos humanos, colocando especial ênfase na proteção das liberdades fundamentais e das garantias do devido processo no contexto da luta antiterrorismo.
5. Adotar medidas para que os juízes e procuradores responsáveis pelas investigações relacionadas com o atentado à AMIA possam ter todas as informações relevantes para conhecer a verdade e julgar e punir os responsáveis, mesmo que as informações estejam sujeitas a qualquer tipo de sigilo ou segredo de Estado. Da mesma forma, assegurar que os peticionários e as vítimas do atentado possa, acessar à informação vinculada com o caso. Em ambos os casos, devem ser implementadas as medidas cabíveis para que toda a informação em poder do Estado sobre o ataque à AMIA seja devidamente protegida e preservada.
6. Adotar e implementar medidas para fortalecer as capacidades do Estado na prevenção de ataques terroristas que constituam atos discriminatórios. Assegurar que as desculpas públicas e os programas de capacitação das autoridades estatais, detalhados nas recomendações acima, incluam o componente relativo às violações ao direito à igualdade e não discriminação, em conformidade com os estândares interamericanos aplicáveis.
A CIDH é um órgão principal e autônomo da Organização dos Estados Americanos (OEA), cujo mandato surge a partir da Carta da OEA e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. A Comissão Interamericana tem como mandato promover a observância e defesa dos direitos humanos na região e atua como órgão consultivo da OEA na temática. A CIDH é composta por sete membros independentes, que são eleitos pela Assembleia Geral da OEA a título pessoal, sem representarem seus países de origem ou de residência.
No. 075/21